Foto: Instituo Paulo Freire

100 anos de Paulo Freire, educador socialista que revolucionou a educação no mundo

"Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base é inclusiva ou excludente?"

Há 100 anos nascia Paulo Reglus Neves Freire, em Recife. Paulo Freire é, sem dúvida, o mais célebre educador brasileiro. Em 1963, em Angicos, no Rio Grande do Norte (RN), comandou um programa de alfabetização de 300 pessoas em um mês. O episódio é apenas um dos inúmeros exemplos de sua vida como professor que ilustra a importância do recifense como principal educador brasileiro e nome fundamental para a pedagogia no século XX. Na ocasião, um grupo de 300 alunos e alunas da região foram alfabetizados em uma jornada de 40 horas, em um projeto de alfabetização para adultos trabalhadores. Método que virou um documentário: ‘40 horas de Angicos’.

Professor de Português na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Freire desenvolveu sua filosofia pedagógica a partir de várias experiências com movimentos populares. Na sua concepção, a palavra deve ser sobretudo vivenciada: a educação é um processo dinâmico e histórico através do qual o indivíduo toma consciência de seu lugar no mundo. Uma educação para a liberdade completa do sujeito, a exemplo do que ilustra o título de seu livro mais famoso Pedagogia do Oprimido, que é considerado um dos textos fundamentais da pedagogia crítica.

O livro é o terceiro mais citado nas ciências sociais de acordo com o Google Scholar, a maior ferramenta de trabalhos acadêmicos do mundo. Ao todo, sua produção intelectual foi usada em, ao menos, 72 mil produções científicas, ficando atrás apenas do filósofo Thomas Kuhn (81 mil) e do sociólogo Everett Rogers (73 mil).

“Nenhuma pedagogia verdadeiramente libertadora pode permanecer distante dos oprimidos tratando-os como desafortunados e apresentando para sua emulação modelos entre os opressores. Os oprimidos devem ser o seu próprio exemplo na luta pela sua redenção.”

Paulo Freire

Apesar de ser o único brasileiro e latino-americano que configura a lista de 25 autores mais usados no mundo, seu reconhecimento para a educação vem sendo questionado dentro do Brasil. Um exemplo do absurdo, no recente 7 de setembro no país, algumas escolas colocaram bandeiras do Brasil em apoio ao ato fascista pró-Bolsonaro, mas ignoraram o aniversário de 100 anos do patrono da Educação brasileira.

Freire batizou as sessões onde suas teorias eram postas em prática com o sugestivo nome de “Círculos de Cultura”, porque durante as aulas discutia-se em simultaneidade com o processo de alfabetização.

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”

Paulo Freire

Freire foi coordenador do Plano Nacional de Alfabetização do presidente João Goulart e, com a ditadura militar fascista de 1964, passou 70 dias na prisão ao ser acusado de “subversivo”. Obviamente, suas influências comunistas o fizeram a ser perseguido e preso. Seu pensamento deriva – também – de diversos pensadores marxistas históricos, como Amílcar Cabral, Rosa Luxemburgo, Frantz Fanon e Che Guevara, são alguns nomes. Ele costumava brincar que vivia entre dois “barbudos”: Karl Marx e Jesus Cristo. Não à toa, é visto por muitos como um socialista cristão.

No exílio, escreveu Pedagogia do Oprimido no Chile, além de ter lecionado nos e na Suíça e organizado planos de alfabetização em países africanos.

No início da década de 70, em Genebra, um grupo de brasileiros exilados, entre eles Freire, fundou o IDAC, o Instituto da Ação Cultural. Este instituto teve como objetivo oferecer serviços educacionais, especialmente para países do “Terceiro Mundo” que lutavam pela sua independência. Essa luta deveria ser baseada no processo da conscientização como fator revolucionário nos sistemas educacionais.

Em 1975, ele e a equipe do IDAC receberam o convite de Mário Cabral, então Ministro da Educação da Guiné-Bissau, para contribuir com o desenvolvimento de um programa nacional de alfabetização. O resultado dessa colaboração foi uma ótima aprendizagem ocorrida entre todos os envolvidos, a equipe do IDAC, os professores, os alunos e os
administradores do sistema educacional naquele pequeno país africano.

São Tomé e Príncipe, recém-libertado da colonização portuguesa, confiou a Freire um programa de alfabetização. Os resultados do programa superaram as expectativas. Quatro anos depois, Freire recebeu uma carta do ministro da educação em que afirmava que 55% dos alunos matriculados nas escolas deixaram de ser analfabetos, além dos 72% que já haviam se formado.

Durante o exílio, Freire experimentou profundamente a dialética entre paciência e impaciência. É preciso ter paciência, impaciência, disse uma vez; e é preciso ser impaciente, pacientemente. Uma pessoa que não é capaz de aprender esta lição pode ser considerada como realmente perdida. Se alguém rompe esse relacionamento, se tende a ser apenas paciente, essa característica é transformada em um ‘anestésico’ que leva a sonhos não realizados. Se, por outro lado, tende a ficar apenas impaciente, corre-se o risco de cair no ativismo, no voluntarismo e no desastre. O único caminho é aquele em direção a “uma harmonia contraditória”. ²

Entre 1975 e 1980, Freire trabalhou em São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola e Nicarágua. Onde quer que trabalhasse, não era apenas um “técnico”, mas também um militante que combinou seu compromisso com a causa da libertação com o amor por pessoas oprimidas pelo sistema capitalista.

“Não existe um processo educacional neutro. A educação ou funciona como um instrumento que serve para facilitar a integração das gerações na lógica do sistema atual e fazer com que ele se adapte, ou se torna a “prática da liberdade”, o meio pelo qual homens e lidam criticamente com a realidade e descubra como participar da transformação de seu mundo.”

Richard Shaull, com base em Paulo Freire. ¹

Voltou ao Brasil somente em 1979, quando ingressou no Partido dos  (PT) em  e atuou como supervisor de seu projeto de alfabetização de adultos de 1980 a 1986. Quando o Partido dos Trabalhadores venceu as eleições para a prefeitura de São Paulo em 1988, Freire foi nomeado secretário municipal de Educação (1989 a 1991).

Nomeado Doutor Honoris Causa de 35 universidades em vários países da Europa e América, com obras traduzidas em mais de 20 idiomas, Freire é reconhecido internacionalmente pelo seu método de alfabetização, que tem como objetivo formar a conscientização dos oprimidos para que esses sejam capazes de atuar em favor da própria libertação e transformar a realidade em que vive.

‘Brasil nunca aplicou Paulo Freire’, diz pesquisador

Em entrevista à BBC News Brasil, o historiador e doutor em Educação José Eustáquio Romão, amigo pessoal e especialista na obra de Paulo Freire, discorda da ideia de que a educação brasileira é freiriana: “Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. (…) Ele entra (nas universidades) como frase de efeito, como título de biblioteca, nome de salão.”

Ele diz que as ideias e o método de alfabetização de adultos criado por Freire já serviram de base para políticas públicas em diversos países, mas ainda se resumem a experiências pontuais no Brasil. “Estou convencido de que se aplicarmos hoje (o método), acabamos com o analfabetismo no Brasil em um ano”, afirma. Segundo os dados do IBGE de 2018, o Brasil possui mais de 11 milhões de analfabetos.

Romão, que é um dos fundadores do Instituto Paulo Freire, passou os últimos 15 anos em busca do manuscrito perdido do livro Pedagogia do Oprimido. O manuscrito, que contém trechos inéditos do livro – publicado nos em 1970 e proibido pelo regime militar brasileiro até 1974 – sobreviveu à ditadura chilena nas mãos de Jacques Chonchol, ex-ministro de Agricultura no governo de Salvador Allende (1970-1973).

Romão conta que “a parte do livro em que Paulo Freire fala sobre a ‘teoria da ação revolucionária’ não existe em nenhuma edição em nenhuma parte do mundo. O que nos faz supor que os (editores) americanos tiraram diversas partes – eu já fiz uma leitura comparada e comprovei que não estão lá. Eles tiraram coisas que acharam um pouco mais perigosas para a ideologia liberal norte-americana. Não fazem por mal, mas por princípio ideológico. É uma teoria de esquerda mesmo, diz que o sujeito da história não são as lideranças, é o coletivo das massas oprimidas. Americano não vai admitir isso, nem os Democratas.”

Como dizia o próprio Paulo Freire:

“Seria uma atitude muito ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de forma crítica.”

Paulo Freire

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1 – Mayo, Peter (1999). Gramsci, Freire e a educação de adultos: possibilidades de ação transforma.

2Heinz-Peter Gerhardt. Paulo Freire (1921-97).

Mídia1508

A 1508 é um coletivo de jornalismo independente anticapitalista, dedicado a expor as injustiças sociais brasileiras e a noticiar as mobilizações populares no Brasil e no mundo.

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