Brasil: Reflexões sobre o momento atual

Nos últimos meses vimos a escalada do fascismo brasileiro arrefecer pelos motivos mais esdrúxulos possíveis: a atitude de Bolsonaro diante da pandemia, a saída de Moro de sua base de apoio e uma interna entre a própria direita, quando ameaçada de perder seu poder sobre as podres instituições brasileiras. Cada vez mais isolado, Bolsonaro continua no entanto ancorado em sua ala militar – que força a barra para manter-se no poder – nas milícias e polícias militares país afora. 

STF, Globo (SBT, Record & CIA) depois de articularem a saída do PT e não conseguirem emplacar nenhum candidato de sua preferência, optaram por Bolsonaro como saída para as suas contra reformas, que com a ajuda preciosa da “empresa” Cambridge Analytica dos EUA nas fake news, conseguiu se eleger de forma completamente ilegítima e entrou arrasando a economia, atacando as políticas ambientais e os povos nativos, e deixando terra arrasada nas políticas públicas brasileiras.  

Com a crescente instabilidade, para não dizer o verdadeiro pandemônio instaurado pelo grupo de Bolsonaro prejudicando as relações internacionais, a odisseia se encaminha para uma tentativa de retorno à “ordem” da velha ditadura empresarial,  a mesma ditadura do capital de sempre, com algum candidato que una discurso anticorrupção, pró “democracia” e desenvolvimentismo liberal, que seja mais polido, articulador e aparentemente “neutro” ideologicamente.

Dentro dessa lógica, os atuais partidos de tendem a se encaixar mais tranquilamente, seguindo as articulações pelo retorno da “estabilidade” – até o próximo capítulo. Ao contrário do que alguns esperançosos acreditavam, após essa experiência traumática os partidos da esquerda institucional brasileira não só não reavaliaram suas atuações, como estiveram ainda mais recuados no combate ao governo Bolsonaro, exceto por ações de “redução de danos” no ring do congresso nacional. 

Não conseguiram assumir papel de oposição ou mobilizar suficientemente a opinião pública brasileira, mas se concentraram na queda de braço dentro do congresso e na salvação nas próximas eleições – ainda que hoje Bolsonaro tenha dezenas de pedidos de impeachment encaminhados pelos mais diversos partidos, dividindo inicialmente as opiniões sobre se é melhor impeachmá-lo ou arrastar o martírio até as próximas eleições (se houver).

Os movimentos populares do campo e da cidade seguem na luta, criando pequenas e grandes resistências às ofensivas do sistema, e multiplicam-se ações de e articulações autônomas que tem potencial para trazer bons frutos.

Um fator novo que nos afeta positivamente são os protestos que tomaram conta dos Estados Unidos, tendo como estopim o brutal assassinato de um homem negro, George Floyd, por um policial branco em Minneápolis.  A dimensão midiática do acontecido – o genocídio sendo mais uma vez escancarado por testemunho inegável – contribui para colocar o racismo em pauta no mundo e dialoga diretamente com a condição brasileira, em que movimentos de e periféricos tem buscado pautar o genocídio que ocorre diariamente por aqui, em condições extremamente difíceis.  Além disso enfraquece Trump, aliado – ou melhor dizendo, patrão – de Bolsonaro.

Tomo a liberdade de avaliar aqui, que o engajamento em relação ao genocídio brasileiro por parte da em geral ainda deixa muito a desejar, não sendo assumido com prioridade como deveria ser. Não poderíamos esperar, por isso mesmo, um engajamento mais geral da população sobre uma pauta tão invisibilizada, apesar de enxergar avanços nos últimos anos nesse sentido – um aumento do debate público a respeito da questão, conquistado a duras penas.

A disputa de discurso deve ser feita todos os dias por todos os meios possíveis, principalmente pelos meios da educação, e mídias, mas os protestos desencadeados em Minneapolis demonstram uma verdade incontestável: o poder é ameaçado de forma mais contundente quando a população decide se revoltar, reagindo violentamente à violência que sofre cotidianamente. Uma profunda revisão da estrutura da segurança pública está nesse momento ocorrendo por lá, após multidões nas ruas incendiarem viaturas, prédios e derrubarem monumentos. O caso do é apenas mais um exemplo histórico e recente de conquista de direitos que está em pleno curso. Logicamente que para isso, não é necessário apenas vontade, mas uma quantidade grande de pessoas indignada o suficiente e disposta a se arriscar – agora duplamente, considerando a pandemia – para colocar para fora aquilo que não as deixa mais respirar. A frase “não consigo respirar”, que se espalhou pelos protestos norte americanos diz muito simbolicamente o que significa essa reação: o que nos sufoca explode, de uma forma ou de outra, seja em doenças no nosso corpo, seja em violência apolítica, seja em violência politicamente consciente. E ao lado das revoltas formam-se grupos, assembléias, companheiros e companheiras de luta,  laços que ficam para além do momento. O mais complicado disso tudo não é lidar com quem pensa diferente, o que é no mínimo saudável – mas assistir várias e várias vezes a institucional boicotar movimentos combativos – até mesmo de greves em sindicatos –  criminalizar pessoas e grupos pregando um pacifismo estéril enquanto nosso povo encara a militarização crescente – esse é o verdadeiro nó cego no hoje.

Sim, porque se fosse o pacifismo de Martin Luther King, que sacudiu os Estados Unidos e protagonizou ações históricas de desobediência civil, seria válido. Mas nem a desobediência civil a brasileira tolera. As ocupações escolares de 2016 que ocorreram em todo o país, por terem os jovens em sua maioria optado pela não relação com lideranças estudantis partidárias, foram sufocadas e não legitimadas – assim como tudo que não esteja sob sua tutela e controle. O que pode ser mais legítimo do que jovens estudantes ocupando suas escolas, organizando suas assembléias, por pautas de defesa à educação? Não precisamos nem entrar no assunto da criminalização constante das manifestações de 2013 e 2014, que seriam, nessa lógica, provocadoras do início da ascenção do fascismo no Brasil – assim como as manifestações convocadas para os últimos dois domingos, possíveis pretextos para um novo “golpe” de Bolsonaro.

Enfim, o contexto brasileiro exige buscarmos oxigênio para respirar seja nas ações comunitárias do dia a dia, seja nas experiências que podemos buscar em nossa história – a confederação dos Tamoios, os quilombos,  os movimentos operários do início do século XX – ou nas que ocorrem pelo mundo, para mantermos a esperança de que um dia, possamos construir uma renovada esquerda, verdadeiramente antirracista, anticapitalista e antissexista, comprometida com a autonomia das lutas populares de forma horizontal.  Reconhecer que a falsa “democracia” representativa apenas representou as elites desde o início de sua invenção e que esse sistema precisa ser destruído, é simplesmente inevitável, e quanto mais se adia essa posição, mais nossos inimigos são capazes de continuar a revigorar o fascismo.

Uma coisa é fato: nosso silêncio não nos protegerá – como dizia Audre Lorde – mas há dias em que falta fôlego.

Hannah Cavalcanti

Professora de história e escritora. Colunista da Mídia1508.

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