Justiça para Thomas Sankara: assassinos do revolucionário vão à julgamento em outubro

Na última terça-feira (17), 34 anos após o golpe, a procuradoria militar burquinabê fixou a data de início do julgamento do homicídio para o próximo dia 11 de outubro.

Foto: A. Joe/Getty Images/AFP

Thomas Sankara era presidente do Burkina Faso quando foi assassinado junto com mais doze pessoas em 1987. Um dos responsáveis pelo crime, Blaise Compaoré, que era seu Ministro da Defesa, assumiu o poder e, apoiado pela França e pelos Estados Unidos, instaurou uma ditadura que se estendeu por vinte e sete anos, até ter sido destituído por uma intensa revolta popular que tomou o país em 2014.

No dia 17 de agosto, 34 anos após o golpe, a procuradoria militar burquinabê fixou a data de início do julgamento do homicídio para o próximo dia 11 de outubro. Além de Compaoré, outras doze pessoas serão julgadas por “atentado à segurança de Estado”, “cumplicidade no assassinato” e “cumplicidade na ocultação de cadáveres”. Haveria mais réus, no entanto, muitos faleceram.

O general Gilbert Diendéré, que se tornou chefe de Estado-Maior das Forças Armadas do Burkina Faso, também está entre os acusados. Diendéré já cumpre atualmente uma pena de vinte anos de prisão por ter tentado realizar outro de Estado em 2015.

Já Compaoré tem conseguido fugir de qualquer punição.

O fim do seu regime o levou a fugir para a Costa do Marfim, onde conseguiu obter cidadania. Há um mandado internacional de prisão contra ele desde dezembro de 2015.

A Terra das Pessoas Íntegras

A juventude no Burkina Faso não esqueceu Thomas Sankara — Foto: Issouf Sanogo/Getty Images/AFP

Carismático e bem humorado, mas dono de uma oratória firme e contundente, Thomas Sankara é considerado uma das grandes figuras políticas africanas do século XX, ao lado de nomes como Patrice Lumumba, Amílcar Cabral e Nelson Mandela. Ficou conhecido por ter estado à frente de uma revolução em sua terra natal em agosto de 1983, quando tinha apenas 33 anos de idade. “O escravo que não é capaz de assumir a sua rebelião não merece que tenhamos pena dele. Este escravo será o único responsável pela sua desgraça se ele se iludir sobre a condescendência de um mestre que afirma libertá-lo. Apenas a luta pode ser livre”, disse uma vez Sankara, que ainda hoje é lembrado como um defensor não apenas de seus compatriotas como de todos os povos oprimidos do mundo.

Quando seu Conselho Nacional da Revolução (CNR) se alçou ao poder, a estrangeira em geral descreveu o evento como um militar – mais um entre diversos ao longo da África. Sankara era um capitão do exército, e uma quantidade de correligionários seus que ocupavam postos chave em sua gestão (inclusive Compaoré a essa altura) eram oficiais. Mas eles derrubaram a junta militar anterior como parte de uma ampla coalizão que incluía diversos grupos políticos progressistas, alguns sindicatos, o movimento estudantil e outros ativistas civis.

Um ano depois de sua posse como chefe de Estado, em 4 de agosto de 1984, ele mudaria o nome do país, batizado pelos colonizadores franceses como “Alto Volta”, para Burkina Faso, o que significa “Terra das pessoas íntegras” nas duas línguas originárias mais faladas na região (mossi e diúla).

Sankara era aberto quanto à sua convicção ideológica: marxista, anti-imperialista. Respaldou vários movimentos que se opunham diretamente à dominação mundial pelas grandes potências capitalistas. Durante viagens à América Latina, abraçou Fidel Castro, bem como os guerrilheiros nicaraguenses resistindo à intervenção dos EUA.

Comprometido com a causa da luta contra o racismo ao redor do globo, visitou o bairro negro nova-iorquino do Harlem em 1984, se solidarizando com a comunidade local: “Nós sentimos que a luta que estamos travando na África, principalmente em Burkina Faso, é a mesma luta que vocês estão travando no Harlem. Sentimos que nós, na África, devemos dar aos nossos irmãos do Harlem todo o apoio de que precisam para que sua luta também se torne conhecida.”

Em seu próprio continente, advogou um modelo de unidade pan-africana baseada em populações mobilizadas – não só no campo da mera fraseologia, como era o caso da maior parte dos governantes africanos, que geralmente mantinham fortes ligações com seus aliados ocidentais. O primeiro novo passaporte de Burkina Faso foi simbolicamente emitido para Nelson Mandela, à época ainda prisioneiro na do Sul do apartheid.

Foi um inimigo da dívida externa, que mantinha (e ainda mantém) os países africanos em situação de humilhação perante suas ex-metrópoles. Em um histórico discurso proferido na tribuna da Organização de Unidade Africana (OUA), na Etiópia, 1987, disparou: “Se não pagarmos, nossos fornecedores de fundos não vão morrer. Ao contrário, se pagarmos, somos nós que vamos morrer. Estejamos seguros disso”.

O presidente de Burkina Faso, Thomas Sankara, durante um discurso em 5 de outubro de 1983 em Paris, França — Foto: Alain MINGAM/Gamma-Rapho/via Getty Images

Embora a pobreza tenha permanecido uma chaga dolorosa para a grande maioria dos burquinabês, não se pode dizer que o governo revolucionário não tenha promovido melhorias significativas nas condições de vida do país. Foram construídas centenas de escolas e postos de saúde, a taxa de alfabetizados subiu de 13% para 67%, 2,5 milhões de crianças foram vacinadas e uma reforma agrária fez com que a produção de trigo mais que dobrasse em apenas três anos. Despesas com a máquina burocrática, como regalias para o próprio presidente e seus ministros, foram drasticamente reduzidas e os recursos aplicados em gastos sociais. Em educação, o aumento foi de 26,5% por pessoa e em saúde 42,3%.

Em uma época em que poucas haviam atingido posições de destaque na sociedade africana, Sankara indicou juízas, altas comissárias regionais e diretoras de empreendimentos estatais. Em cada um de seus governos, em 1986 e 1987, havia cinco mulheres ministras, cerca de um quinto do total.

Outra marca do sankarismo foi a criação de programas governamentais com medidas específicas para este segmento, como a orientação sobre maternidade em vilas rurais e o apoio a cooperativas e associações comerciais femininas. Um novo código da família estabeleceu uma idade mínima para o casamento, o divórcio por consenso mútuo, reconheceu o direito das viúvas a herança e a aboliu o pagamento pelo noivado. Campanhas públicas buscaram erradicar a mutilação genital feminina, o casamento forçado e a poligamia.

Assim como em relação aos direitos das mulheres, Sankara foi também um pioneiro na preocupação com o tema da sustentabilidade ambiental. Sob seu comando, centenas de novos poços foram cavados e reservatórios construídos para melhor conservar a pouca água de que dispunha o país. Agricultores foram ensinados sobre como combater a erosão do solo e produzir fertilizantes orgânicos e milhões de árvores foram plantadas pelas zonas rurais. O revolucionário foi ainda um dos primeiros a denunciar e cobrar a responsabilidade das potências colonialistas pela degradação do meio ambiente provocada por sua exploração dos recursos naturais das terras africanas.

Alguns países ocidentais continuaram a auxiliar os esforços dos pelo desenvolvimento burquinabê, mas muitos – receosos da política do governo revolucionário – reduziram o financiamento. Além disso, como era de se prever, Sankara atraiu o ódio da França, dos EUA e de outras nações poderosas.

Não fosse isso suficiente, seus interlocutores africanos, especialmente a vizinha Costa do Marfim, Mali e Togo, longe de aderirem ao programa pan-africanista preconizados pelo CNR, também tentaram a todo momento desestabilizar a revolução, ajudando militares golpistas a promoverem bombardeios no país. Em 1986, o Mali chegou até mesmo a travar uma breve guerra contra Burkina Faso.

Diante desse clima, Sankara enfatizava sempre a necessidade de ser tão autossuficiente economicamente quanto fosse possível. Evitava aceitar auxílios que viessem às custas submissão política. “Nós sabemos que temos de depender de nós mesmo”, repetia a todo momento, como um mantra.

O legado de Sankara

A juventude em um dos protestos que derrubou o ditador Blaise Campaoré, em 2014. Ele assumiu o poder e, apoiado pela França e pelos Estados Unidos, instaurou uma ditadura que se estendeu por vinte e sete anos. Foi destituído por uma intensa revolta popular que tomou o país naquele ano — Foto: Issouf Sanogo/Getty Images/AFP

Em outubro de 1987, numa comemoração em memória do revolucionário sul-americano, Sankara citou Che Guevara, a quem costuma ser frequentemente comparado: “Pode-se matar e indivíduos, mas não ideias”. Uma semana depois, Sankara seria fuzilado e o autocrata Campaoré começaria a desfazer a maior parte de suas iniciativas e conquistas, alinhando completamente Burkina Faso aos ditames dos organismos financeiros internacionais.

De imediato, a população se levantou contra o assassinato de seu líder, mas Compaoré a reprimiu brutalmente, dando uma mostra da tirania que caracterizaria as décadas seguintes do seu regime. A ira das massas, no entanto, ressurgiria com força total em 2014, após o ditador tentar mudar a Constituição para permanecer ainda mais tempo no poder.

Durante os meses dos protestos que levaram à deposição de Compaoré, Sankara foi praticamente onipresente. Manifestantes carregavam seu retrato e sua voz gravada ressoava nos equipamentos de som. Citações suas eram apresentadas na forma cânticos populares. Mesmo os líderes da oposição moderada frequentemente encerravam suas falas com o emblemático lema do revolucionário (que aqui, mais uma vez, se inspirou em Cuba): La patrie ou la mort, nous vaincrons! (“Pátria ou morte, venceremos!”).

Os dirigentes da parlamentar não deixaram de desempenharam um papel, convocando inicialmente as demonstrações. Mas foram sobretudo os círculos de ativistas e as redes da juventude aqueles que se ergueram e enfrentaram as tropas do Estado, com muitas dúzias de manifestantes sacrificando suas vidas no processo.

Enquanto os revoltosos marchavam em direção ao prédio da Assembleia Nacional em 30 de outubro (antes de incendiá-lo), eles entoavam conhecidas palavras de ordem de Sankara como “Quando o povo se levanta, o imperialismo treme”. 

Como oponentes de longa data do governo golpista, os abertamente identificados com o legado da revolução passam a dispor de considerável autoridade moral, pressionando por reformas políticas e sociais e pela apuração das violações de e dos casos de corrupção ocorridos sob Compaoré.

Na esteira do trabalho investigativo realizado anos antes pelo jornalista Norbert Zongo, é aberto pela primeira vez um inquérito oficial sobre a morte do próprio Sankara, vindo a resultar no processo judicial que agora se encaminha para sua conclusão.

“Justiça para Sankara” tornou-se um grito de guerra décadas após sua morte. Protesto contra o governo golpista de Blaise Campaoré em abril de 2011 — Foto: Ahmed Ouoba/AFP

Mas mais do que as circunstâncias de sua morte, são o seu exemplo e as suas palavras aquilo que desperta mais interesse nas novas gerações. Em seu internacionalismo, Sankara não ignorava que sua pátria apenas sairia vencedora se suas pátrias irmãs também sacudissem o jugo do neocolonialismo, ou seja, a que vitória final de Burkina Faso somente seria possível se fosse também a vitória dos demais países africanos.

Tal como Che, entre a Pátria (revolucionária) e a Morte, Sankara acabou por encontrar a última, justamente por tanto ter buscado construir a primeira. Porém, ainda que não tenha vivido para assistir à derradeira vitória a qual aspirou, são os seus algozes os verdadeiros derrotados. Independente de quais sejam a ser as consequências legais que venham ou não a sofrer, já foram condenados pelo próprio povo, passando à história como os traidores que são.

Sankara, por sua vez, revive diariamente, no espírito das multidões que, na e em todo lugar, seguem tomando as ruas, na luta por liberdade, igualdade e justiça social. Como ele próprio avaliou: “o mais importante é ter levado o povo a ter confiança nele mesmo, a entender que, finalmente, ele pode se sentar e escrever seu desenvolvimento; escrever a sua felicidade; dizer o que desejar.”

Thomas Sankara aos 36 anos, em 1985, Burkina Faso — Foto: William F. Campbell/Getty Images

Mídia1508

A 1508 é um coletivo de jornalismo independente anticapitalista, dedicado a expor as injustiças sociais brasileiras e a noticiar as mobilizações populares no Brasil e no mundo.

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