A obsessão da esquerda brasileira com o cis-tema racista e patriarcal “republicano”

"Revolução, nada menos!" na camisa de uma militante negra nos EUA / Foto: E. Munoz/Reuters

A obsessão da brasileira com o cis-tema racista e patriarcal “republicano”

Por Hannah Cavalcanti

O projeto de república brasileiro que venceu em 1889 foi o mais conservador possível, forjado em um golpe militar. Não por acaso manteve o racismo estrutural e institucional brasileiro que promove o de nossos povos originários e pretos há mais de 500 anos. Após sucessivos governos autoritários, que tiveram seu ápice (até então) na ditadura civil-militar dos anos 60, a constituição de 88 reacendeu a chama da esperança de um processo democrático no Brasil, mas sob o domínio das mesmas elites – como se isso fosse possível. Nenhuma constituição doma as feras que habitam o congresso brasileiro, quando a lei que se aplica na realidade é a lei do cão.  Em pleno século XXI, o fascismo à brasileira se atualiza com velhos atores, os mesmos sanguessugas que se perpetuam no poder. Sim, fascismo – pois o maior partido fascista fora da Europa existiu no Brasil, os Integralistas – e Bolsonaro, tão tacanho quanto perigoso, é um de seus herdeiros mais patéticos.

Diante do mais absoluto caos social cuja descrição não caberia em um texto, minimizado pela ações de e auto-organização de movimentos, grupos e pessoas em todo o país – diante do intenso avanço do capital sobre os direitos trabalhistas e humanos em geral, o parlamento é a única arena na qual se concentra a esquerda brasileira – a ponto de conseguir com muito custo o aumento do auxílio emergencial para 600 reais e o ganho de capital político ser de Bolsonaro, tamanha a distância existente na comunicação entre ela e o povo no dia a dia.

Após o brutal assassinato da vereadora Marielle Franco, cujas investigações apontam escancaradamente para a família Bolsonaro – o lançamento de diversas candidaturas negras poderiam ser novamente uma chama de esperança no mar de lama tóxica em que afunda o país.

Mas olhando atentamente e mais de perto, independente do resultado dessas candidaturas, não teremos muito a comemorar. Quem dita a política dentro dos partidos são as direções constituídas majoritariamente de homens brancos de classe média/alta (sem identificação real nenhuma com homens brancos notáveis como Che Guevara, infelizmente) encastelados em seus vícios parlamentares, insistentes em suas posições de negociação total com os representantes do capital.

A cartilha dos líderes partidários da esquerda brasileira acaba se revelando como uma verdadeira cilada às práticas políticas daqueles que morrem todos os dias no Brasil.  Reproduzem de outras formas o poder neocolonial, ao tentar apaziguar as parcelas da população sedentas por mudanças em troca de promessas de uma transitória posição de poder na estrutura criada e mantida por esse mesmo sistema, que dá certo para ele há centenas de anos.

Um exemplo me choca particularmente: diz respeito ao caso Crivella, no qual a população carioca foi nacionalmente exposta à mais gritante humilhação – constatar que seu prefeito paga salários robustos a milicianos para coagirem pessoas que denunciam o desmonte da pública. Como se não bastasse todos os crimes cometidos por Crivella contra a população carioca, esse o colocou como alvo de mais um processo de impeachment – novamente negado pelos vereadores. Nas redes sociais, o que vimos? Explosões de conclamando a população ? De forma alguma. Apenas frases como “vamos gritar nas urnas” – sim é isso que você está lendo: o mais infame trocadilho do século, que coloca uma ação ativa – a de gritar, no lugar de uma ação passiva – a de apertar um botão que escolhe um “representante” e transferir para ele o seu poder de ação política. Uma ação anestesiante, em troca de uma ação pulsante – depois disso podemos dizer que essa esquerda é quase literalmente o paracetamol da luta política no Brasil.

Digna até os ossos, da denominação “pelego” – alusão à pele de cordeiro usada nos arreios dos cavalos para que o cavaleiro se sinta mais confortável ao montar, e o animal mais tranquilo ao ser montado – que passou a defini-la desde os anos 30.

E não ignoramos aqui a realidade imediata do poder eleitoral – até os zapatistas participaram de eleições recentemente, mas sem deixar de lado seu foco principal, a construção de autonomia e autodefesa em um projeto revolucionário. Ou seja, não se trata simplesmente de pregar o voto nulo que há tempos já supera os votos válidos no Rio de Janeiro por exemplo, já que independente de qualquer coisa a população já não legitima a falsa representativa brasileira que beira a distopia. Trata-se de entender de uma vez por todas, que nunca conseguiremos ter força diante do capital e contrapor um outro projeto de sociedade sem estar construindo lado a lado essa consciência em ações de organização comunitária sem hierarquias e sem reproduzir o que se diz combater.

“Se votar mudasse algo, seria proibido” (Emma Goldman) nunca teve tanta atualidade, tanta verdade. Enquanto nos iludirmos com a esquerda branca patriarcal como via para alcançar as transformações mais profundas – para começar o direito à vida – estaremos andando em círculos, em um labirinto onde quem ganha e sai fortalecido de golpe em golpe é o capital. 

EN ESPAÑOL

La obsesión de la izquierda brasileña con el tema cis-racista y patriarcal “republicano”

El proyecto de la república brasileña que ganó en 1889 fue lo más conservador posible, forjado en un golpe militar. No es casualidad que mantuvo el racismo estructural e institucional en que ha promovido el genocidio de nuestros pueblos originarios y negros durante más de 500 años. Después de sucesivos gobiernos autoritarios, que tuvieron su apogeo (hasta entonces) en la dictadura cívico-militar de la década de 1960, la constitución del 88 reavivó la llama de la esperanza de un proceso democrático en Brasil, pero bajo el dominio de las mismas élites, como si ese fuera el caso .posible. Ninguna constitución domestica a las bestias que habitan el congreso brasileño, cuando la ley que realmente se aplica es la ley del perro. En el siglo XXI, el fascismo brasileño se actualiza con viejos actores, las mismas sanguijuelas que se perpetúan en el poder. Sí, el fascismo, porque en Brasil existía el partido fascista más grande fuera de Europa, los Integralistas, y Bolsonaro, tan estrecho como peligroso, es uno de sus herederos más patéticos.

Ante el caos social más absoluto cuya descripción no encajaría en un texto, minimizado por las acciones de solidaridad y autoorganización de movimientos, grupos y personas en todo el país – ante el intenso avance del capital en materia laboral y de derechos humanos en general, El parlamento es el único escenario en el que se concentra la izquierda brasileña, hasta el punto de obtener a muy alto costo el aumento de la ayuda de emergencia a 600 reales y la ganancia de capital político por ser de Bolsonaro, tal distancia en la comunicación entre ella y la gente del país día a día.

Tras el brutal asesinato de la concejal Marielle Franco, cuyas investigaciones apuntan abiertamente a la familia Bolsonaro, el lanzamiento de varias candidaturas negras podría volver a ser una llama de esperanza en el mar de barro tóxico en el que se hunde el país.

Pero mirando más de cerca, independientemente del resultado de estas candidaturas, no tendremos mucho que celebrar. Quien dicta la política dentro de los partidos son las direcciones constituidas principalmente por hombres blancos de clase media / alta (sin identificación real alguna con hombres blancos notables como el Che Guevara, lamentablemente) atrapados en sus vicios parlamentarios, insistentes en sus posiciones de negociación total con los representantes del capital.

La cartilla de los dirigentes del partido de la izquierda brasileña acaba revelándose como una verdadera trampa para las prácticas políticas de quienes mueren cada día en Brasil. Reproducen el poder neocolonial de otras formas, tratando de apaciguar a las porciones de la población sedientas de transformaciones en cambio de promesas de una posición transitoria de poder en la estructura creada y mantenida por este mismo sistema, que le ha funcionado durante cientos de años.

Uno ejemplo me sorprende particularmente: se refiere al caso Crivella, en el que la población de Río de Janeiro fue expuesta a nivel nacional a la más dura humillación, al encontrar que su alcalde paga fuertes salarios a los milicianos para coaccionar a las personas que denuncian el desmantelamiento de la salud pública. Como si todos los crímenes cometidos por Crivella contra la población de Río no fueran suficientes, esto lo convirtió en el objetivo de otro proceso de acusación, nuevamente negado por los concejales. En las redes sociales, ¿qué vimos? ¿Estallidos de revuelta llamando a la población? De alguna forma. Frases como “gritemos en las urnas” – sí, esto es lo que estás leyendo: el juego de palabras más infame del siglo, que pone una acción activa – la de gritar, en lugar de una acción pasiva – la de presionar un botón que elige una “Representante” y transferirle su poder de acción política. Una acción anestésica, a cambio de una acción pulsante – después de eso podemos decir que esta izquierda es casi literalmente el paracetamol de la lucha política en Brasil.

Digno hasta los huesos, de la denominación “pelego” – en alusión a la piel de cordero que se utiliza en el arnés de los caballos para que el jinete se sienta más cómodo al montar, y el animal más tranquilo al montar- que ha venido a definir esta izquierda desde los años 30. 

Y no desconocemos la realidad inmediata del poder electoral aquí, incluso los zapatistas participaron en elecciones recientemente, pero sin dejar de lado su eje principal, la construcción de autonomía y autodefensa en un proyecto revolucionario. En otras palabras, no se trata simplemente de predicar el voto nulo, que ha superado durante mucho tiempo a los votos válidos en Río de Janeiro por ejemplo, ya que sin importar nada la población ya no legitima la falsa representativa brasileña que raya en la distopía. Es cuestión de entender, de una vez por todas, que nunca podremos tener fuerza frente al capital y oponernos a otro proyecto de sociedad sin construir esta conciencia codo con codo en acciones de organización comunitaria sin jerarquías y sin reproducir lo que se dice lucha.

“Si votar cambiara algo, se prohibiría” (Emma Goldman) nunca ha sido tan actual, tan cierto. Mientras nos engañemos con la izquierda patriarcal blanca como forma de lograr las transformaciones más profundas – para iniciar el derecho a la vida – estaremos caminando en círculos, en un laberinto donde el capital gana y se fortalece de golpe en golpe.

IN ENGLISH

The Brazilian left’s obsession with the racist and patriarchal cis-theme “republican”

The Brazilian republic project that won in 1889 was as conservative as possible, forged in a military coup. It is not by chance that he maintained the structural and institutional in Brazil that has promoted the genocide of our native and black peoples for more than 500 years. After successive authoritarian governments, which had their peak (until then) in the civil-military dictatorship of the 1960s, the constitution of 88 rekindled the flame of hope for a democratic process in Brazil, but under the rule of the same elites – as if that were the case possible. No constitution tames the beasts that inhabit the Brazilian Congress, when the law that actually applies is the law of the dog. In the middle of the 21st century, Brazilian fascism is updated with old actors, the same leeches that are perpetuated in power. Yes, fascism – because the biggest fascist party outside Europe existed in Brazil, the Integralistas – and Bolsonaro, as narrow as he is dangerous, is one of his most pathetic heirs.

In the face of the most absolute social chaos whose description would not fit in a text, minimized by the actions of solidarity and self-organization of movements, groups and people across the country – in the face of the intense advance of capital on labor and human rights in general, the parliament is the only arena in which the Brazilian left is concentrated – to the point of obtaining at a very high cost the increase in emergency aid to 600 reals (something around 100 dollars) and the gain of political capital to be from Bolsonaro, such a distance in the communication between the left and the people in the day by day.

After the brutal murder of council woman Marielle Franco, whose investigations openly point to the family – the launch of several black candidacies could again be a flame of hope in the sea of ​​toxic mud in which the country sinks.

But looking more closely, regardless of the outcome of these candidacies, we will not have much to celebrate. Who dictates the politics within the parties are the directions made up mostly of white men of middle / upper class (with no real identification whatsoever with notable white men like Che Guevara, unfortunately) trapped in their parliamentary vices, insistent in their positions of total negotiation with the representatives of capital.

The booklet of party leaders of the Brazilian left ends up revealing itself as a real trap for the political practices of those who die every day in Brazil. They reproduce neocolonial power in other ways, by trying to appease the portions of the population thirsty for change in exchange for promises of a transitory position of power in the structure created and maintained by this same system, which has worked for him for hundreds of years.

One example particularly shocked me: concerns the Crivella case, in which the population of Rio de Janeiro was nationally exposed to the most striking humiliation – to find that its mayor pays hefty salaries to militiamen to coerce people who denounce the dismantling of public health. As if all the crimes committed by Crivella against the population of Rio were not enough, this made him the target of yet another impeachment process – again denied by the councilors. On social media, what did we see? Outbreaks of revolt calling the population? No way. Just phrases like “let’s shout at the polls” – yes, this is what you are reading: the most infamous pun of the century, which puts an active action – that of shouting, instead of a passive action – that of pressing a button that chooses a “Representative” and transfer his political action power to him. An anesthetizing action, in exchange for a pulsating action – after that we can say that this left is almost literally the paracetamol of the political struggle in Brazil.

Worthy to the bone, of the denomination “pelego” – an allusion to the lambskin used in the harness of the horses so that the rider feels more comfortable when riding, and the more peaceful animal when being mounted – which has come to define this left since the years 30.

And we are not ignoring the immediate reality of electoral power here – even the Zapatistas participated in elections recently, but without neglecting their main focus, the construction of autonomy and self-defense in a revolutionary project. In other words, it is not simply a matter of preaching the null vote, which has long surpassed the valid votes in Rio de Janeiro for example, since regardless of anything the population no longer legitimizes the false representative Brazilian democracy that borders on dystopia. It is a matter of understanding, once and for all, that we will never be able to have strength in the face of capital and oppose another project of society without building this awareness side by side in community organization actions without hierarchies and without reproducing what is said to be fighting.

“If voting changed something, it would be banned” (Emma Goldman)  has never been so topical, so true. As long as we delude ourselves with the white patriarchal left as a way to achieve the transformations we need – to start the right to life – we will be walking in circles, in a maze where the capital gains and gets strengthened from blow to blow.

_
Hannah Cavalcanti é professora de história e escritora
.

Hannah Cavalcanti

Professora de história e escritora. Colunista da Mídia1508.

Deixe seu comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado.

Últimas Notícias