Caso Caio e Fábio: vítimas de lawfare midiático, manifestantes vão a julgamento esta terça

Morte acidental de cinegrafista foi usada como pretexto para abafar protestos e impulsionar a aprovação, pelo governo Dilma, da Lei Antiterrorismo.

Manifestação ocorrida em 2014, Rio de Janeiro — Foto: Isaac Ribeiro/AND

Durante a Operação Lava Jato, ficou conhecido o termo “lawfare” – o uso dos tribunais como ferramentas de perseguição a indivíduos ou grupos que se deseja eliminar da arena pública, desrespeitando os seus direitos e atropelando procedimentos legais.

No entanto, o que pouca gente notou (ou quis notar) é que, antes de ser mobilizado pela famigerada “República de Curitiba” de Moro contra Lula e o PT, esse tipo de expediente foi empregado no Rio de Janeiro, com o beneplácito do partido. Na ocasião, serviu, sobretudo, aos interesses de um dos seus antigos aliados: o então governador Sérgio Cabral, hoje notório pelos escândalos de corrupção em que se envolveu e pelos quais responde atualmente em liberdade.

Dentre os seus alvos, os jovens Caio Silva de Souza e Fábio Raposo talvez sejam os que tiveram suas vidas afetadas de forma mais dramática. Condenados antecipadamente pelo oligopólio da comunicação brasileira, os dois vão a julgamento, por júri popular, nesta terça-feira (12), pela morte do cinegrafista da TV Bandeirantes Andrade. O profissional veio à óbito após ser atingido por um rojão na cabeça em 6 de fevereiro de 2014, enquanto cobria um confronto entre a PM de Cabral e manifestantes pelo nas imediações da Central do Brasil.

A família de merece toda a e sua dor é inteiramente compreensível. Mas não é um argumento jurídico. Tampouco altera os fatos em torno do caso, que foi utilizado como pretexto para abafar os à época crescentes protestos populares e impulsionar a aprovação, pelo governo Dilma, da Lei Antiterrorismo.

estão sendo acusados de “homicídio doloso duplamente qualificado”, como se tivessem considerado e aceito o risco de causar a fatalidade. Ainda, de terem agido de modo a impossibilitar a defesa da vítima, que estava de costas.

As circunstâncias do ocorrido poderiam ser melhor esclarecidas se a TV Bandeirantes tivesse efetivamente cumprido a ordem judicial de fornecer a íntegra das últimas imagens gravadas pela vítima. Em vez disso, porém, a emissora se limitou a enviar um CD contendo apenas 15 segundos de filmagens, nitidamente editadas. Por que querem que os manifestantes sejam julgados sem que a gravação em questão venha à tona? O que há para se esconder nesses arquivos?

Quaisquer que sejam as respostas para essas perguntas, o que se sabe é que a imputação de premeditação é absurda e autocontraditória. Não havia – a própria polícia o admite – nenhuma previsibilidade na ação do artefato detonado. Se dez reconstituições do episódio fossem feitas, dez resultados distintos seriam obtidos. Como teria sido possível então para os dois rapazes haver planejado atingir uma pessoa, quanto mais desta ou daquela maneira, para que ela estivesse indefesa?

Violência da PM

Ora, se estava de costas para a manifestação, é justamente porque aquilo que registrava não era a alegada “violência” dos seus participantes, mas sim a brutalidade da PM, que os atacava e a todos ao redor (inclusive, os trabalhadores da imprensa), com bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo. Um dos policiais, que se encontrava no local e depôs em juízo, afirmou: “ele estava me filmando”.

A intensa tornou rapidamente caótica a situação, o que, além de ocasionar o grave ferimento sofrido pelo repórter, provocou também a morte do ambulante Tasman Acioly, de 72 anos, atropelado por um ônibus enquanto tentava fugir dos explosivos lançados pela polícia.

Vale lembrar que uma semana antes tinham sido realizados outros dois atos contra o aumento das passagens, que transcorreram sem nenhum incidente mais sangrento. Pelo contrário, foram alegremente recebidos na Central pelos usuários da Supervia, já fartos da precariedade do serviço e das tarifas extorsivas praticadas pela concessionária. Não faltou quem se juntasse aos ativistas, saltando as catracas da estação para expressar sua justa revolta contra todo aquele descaso.

O que mudou em tão pouco tempo para que o 6 de fevereiro viesse a ter desfecho tão trágico? Respondemos: a conduta da PM. Diferente de nas vezes anteriores, naquela data, a corporação foi à campo com o claro intuito de impedir, a qualquer custo, que acontecesse novamente o assim chamado “catracaço”. Foi o abuso policial, portanto, o fator determinante para que houvesse as duas mortes.

Estas, por sinal, estão longe de terem sido as primeiras no contexto daquele ciclo de manifestações. Antes de Santiago, morreram a gari Cleonice Vieira de Moraes, em Belém, e o ator Fernando da Silva Cândido, no Rio, por complicações respiratórias após inalarem gás lacrimogênio; os estudantes Douglas Henrique de Oliveira e Luiz Felipe Aniceto, empurrados do alto de um viaduto pela ação irresponsável da PM de Belo Horizonte; o morador de rua Luis Estrela, covardemente espancado por esta mesma PM, entre outros.

A lista de vítimas não fatais é ainda mais extensa e compreende um número expressivo de profissionais da imprensa. Segundo a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), somente em junho de 2013, foram 114 membros da categoria feridos, a grande maioria por armamentos e golpes de policiais.

Nenhum deles recebeu alguma retratação por parte do Estado, ou a mesma atenção da mídia hegemônica. Não foram levadas adiante quaisquer investigações e os agentes envolvidos nas agressões jamais foram responsabilizados ou punidos.

Dois pesos, duas medidas

O caso do fotógrafo Sérgio Silva de Almeida é emblemático dessa iniquidade de tratamento.

Em 13 de junho de 2013, ele teve um dos olhos estraçalhado por uma bala de borracha da PM paulista quando cobria uma manifestação contra o aumento das tarifas de ônibus.

A foi tão truculenta naquela noite que deixou mais de 100 pessoas feridas, entre elas diversos jornalistas, como o próprio Sérgio, a repórter Giuliana Vallone (também atingida no olho) e os fotógrafos Fábio Braga (atingido no rosto) e Filipe Araújo (atropelado por uma viatura da Força Tática).

Apesar de todas as evidências do uso desproporcional da força por parte da polícia, os desembargadores da 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decidiram, em abril deste ano, manter o posicionamento de 2017 da mesma turma, que julgou improcedente o pedido de indenização feito pelo trabalhador.

Segundo a criativa argumentação dos magistrados Rebouças de Carvalho, Décio Notarangeli e Oswaldo Luís Palu, não teriam sido apresentadas provas, no processo, de que a lesão que cegou Sérgio foi causada pelo tiro de bala de borracha disparado pela PM. Eles citam um laudo pericial, de acordo com o qual o ferimento poderia ter se originado de “pau, pedra, mão, cabeça, bolas de gude, bolas e tacos de bilhar, ‘paintball’, coronha de armas, máquina fotográfica próxima ao olho para fotografia e até mesmo projéteis de arma de fogo feitos de borracha ou de elastômero, etc”.

A sentença dada em primeira instância pelo juiz Olavo Zampol Junior consegue ser ainda mais cruel: não só ratifica o negacionismo oficial, como afirma que, no fundo, sequer importa se Sérgio foi atingido pela polícia ou não. Nas palavras de Zampol: “Mesmo que houvesse provas de que o ferimento experimentado pelo autor tenha sido provocado por bala de borracha disparada pela polícia, ainda assim, não haveria de se cogitar da pretendida indenização”.

A culpa, para ele, seria de Sérgio, que estava no lugar onde a polícia atirava. “Ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer.”

E continua: “Não por outro motivo alguns jornalistas buscam dar visibilidade de sua condição em meio ao confronto ostentando coletes com designação disso, e mais recentemente, coletes a prova de bala e capacetes.”

Como se pode ver, é bastante óbvia a analogia com o caso Andrade. Por que então usar nele um outro peso e outra medida?

Se os envolvidos são policiais, então não existem provas no mundo suficientes para os incriminar. Também é indiferente o quão inequívoca possa ter sido a intenção de mutilar ou, até mesmo, matar: errado foi quem se meteu no caminho.

Por outro lado, se forem manifestantes, devem ser automaticamente taxados como criminosos da pior espécie, mesmo que todos os elementos indiquem ter se tratado de um acidente.

Nem é preciso dizer que não se está aqui a defender a culpabilização de pelo que lhe aconteceu.

É dever das empresas de comunicação garantir a segurança de seus jornalistas no exercício de suas funções. Algo que não foi feito pela TV Bandeirantes quando enviou o fotógrafo a uma zona de potencial confronto sem nenhum tipo de Equipamento de Proteção Individual (EPI) – contrariando, inclusive, aquilo que prevê a Norma Reguladora (NR) nº 6, já vigente à época.

Em que pese previsível, é de causar náusea o silêncio de âncoras televisivos e “formadores de opinião” quanto a essa omissão, ao mesmo tempo em que clamam histericamente pela punição dos dois jovens.

Nesse ponto, não temos como não fazer nosso o dito do escritor e militante comunista Igor Mendes: “Algumas empresas vendem sanduíches, a chamada “grande imprensa” vende versões convenientes a seus patrões”.

Ricardo Pitta

Redator e revisor.

Rafael Daguerre

Fotógrafo, Repórter, Editor e Documentarista

Um dos fundadores da Mídia1508. "Ficar de joelhos não é racional. É renunciar a ser livre. Mesmo os escravos por vocação devem ser obrigados a ser livres, quando as algemas forem quebradas" ― Carlos Marighella.

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