Imagem: Guilhotina.info

Expansão da OTAN apoia aniquilação do povo Curdo pelas mãos da Turquia

O anúncio de uma nova operação no norte da Síria não significa, no entanto, que Rojava tenha vivido, desde o cessar-fogo que terminou a ofensiva turca de 2019, algum tipo de paz. As notícias de ataques de artilharia, drones e bombardeamentos aparecem regularmente.

Por Francisco Norega

Na terça-feira (26 de junho), véspera da Cúpula da OTAN, Erdogan, o presidente turco, reuniu-se em Madrid com o presidente finlandês, a primeira-ministra sueca e o secretário-geral da OTAN. O objetivo era desbloquear a entrada da Suécia e da Finlândia na OTAN, algo que a Turquia vinha se opondo nas últimas semanas, caso não fossem cumpridas uma série de exigências. A Turquia acusa estes países de apoiar o PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, uma organização que classifica como terrorista.

O acordo trilateral, assinado na terça-feira em Madrid pelos três governos, satisfaz todas as exigências turcas. Erdogan tem permissão para seguir as suas políticas imperialistas e, para os restantes estados-membros da OTAN, o destino do povo Curdo é visto como um detalhe sem importância, vendido de forma vil em troca de uma porta aberta à entrada dos dois países nórdicos na Aliança Atlântica.

O que exigia a Turquia?

Antes mesmo do anúncio oficial do pedido de adesão da Suécia e da Finlândia, em 18 de Maio, a Turquia já tinha anunciado a sua lista de exigências.

Antes de mais, os países aspirantes à OTAN teriam de reconhecer a ameaça que representam os grupos armados curdos para a Turquia e denunciar publicamente, não só o PKK, mas também todos os grupos associados a ele. A Turquia afirmou também que seria necessário que os países nórdicos reprimissem os simpatizantes do PKK nos seus territórios.

O governo turco exigia também o fim das restrições às exportações de armas para a Turquia, impostas pela Suécia, Finlândia e outros membros da União Europeia (UE), depois de em 2019 esta ter lançado uma ofensiva militar em Rojava e no Norte da Síria para empurrar as YPG para longe das suas fronteiras.

Outra coisa que a Turquia pretende conseguir a troco do seu acordo para a expansão da OTAN é a modernização e o aumento da sua capacidade militar, de modo a poder pôr em prática as suas aspirações imperialistas na região. Depois de a Turquia ter assinado a compra de sistemas de defesa antiaérea russos S-400, os EUA impuseram sanções contra a Turquia e esta foi excluída do programa dos F-35. A Turquia quer não só reverter estas decisões, mas quer também que os EUA finalmente cedam ao seu pedido para comprar mais algumas dezenas de F-16 e kits para atualizar a frota desses aviões que a Turquia já tem. 

Rojava na mira…

Ainda em Maio, Erdogan anunciou também que a Turquia lançará “em breve” uma nova invasão no norte da Síria para expandir o território ocupado durante a “Operação Nascente de Paz”, em 2019. As forças aliadas à Turquia na Síria levaram a cabo no último mês e meio vários exercícios em Aleppo e Tal Abyad para se prepararem para a nova ofensiva. [1, 2, 3

Para além de todas estas concessões formais, Erdogan está usando a ameaça de veto à entrada dos dois países na OTAN para garantir uma carta branca do Ocidente para as suas ambições imperialistas no Oriente Médio. A Turquia de Erdogan considera o projeto de Rojava, o curdistão sírio, uma das maiores ameaças à sua segurança e ao seu projeto político. A Revolução de Rojava, que completa agora 10 anos, eclodiu no contexto da guerra contra o Estado Islâmico. Frente às maiores adversidades, construiu-se em Rojava um sistema de autogoverno que integra as diferentes etnias e religiões nas estruturas de auto-organização da sociedade, numa experiência baseada na teoria do Confederalismo Democrático de Abdullah Ocalan. As mulheres tiveram um papel central em todo o processo, desde a resistência armada contra o ISIS à construção das estruturas civis e populares.

Fotorreportagem da Guilhotina.info — Curdistão / Rebentos da Revolução

Rojava, ao mostrar que é possível construir um modelo de sociedade fora da lógica do estado-nação, em que a população participa diretamente da gestão da sociedade, converteu-se numa ameaça às diferentes potências que a rodeiam, e acima de tudo à Turquia, com quem faz fronteira. O maior pesadelo de Erdogan é que Rojava inspire outros povos da região e dê um novo ímpeto às lutas por autonomia, nomeadamente a luta do povo curdo de Bakur, a região norte do Curdistão, que corresponde ao sudeste da atual Turquia.

O anúncio de uma nova operação no norte da Síria não significa, no entanto, que Rojava tenha vivido, desde o cessar-fogo que terminou a ofensiva turca de 2019, algum tipo de paz. As notícias de ataques de artilharia, drones e bombardeamentos aparecem regularmente. Durante o mês de abril, a Turquia e os seus aliados lançaram ataques de artilharia contra Kobane, Tal Tamr e Zarkan, assim como vários ataques com drones – num deles, também em Kobane, uma co-comandante e duas combatentes das YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres) foram assassinadas por um drone não tripulado, controlado por algum sádico atrás de um computador. Os seus nomes eram Dilar Heleb, Ronahî Kobanê e Kobanî.

Lê-se no comunicado das YPJ:

Um conceito de aniquilação está a ser implementado no Curdistão, tem como objetivo o genocídio e é direcionado contra o povo curdo e o modelo de nação democrática. O ocupante, o Estado turco, está a atacar todas as quatro partes do curdistão com o apoio das potências regionais e internacionais. (…) Enfrentámos o ISIS por toda a humanidade e lutámos por todas as mulheres e pelo povo da região. O estado turco atacou a revolução de Rojava desde o início, em frente aos olhos do público mundial. [O estado turco é] anti-mulheres e tem uma especial hostilidade contra forças organizadas de mulheres. A 20 de Abril de 2022, as nossas companheiras Dilar, Ronahî e Kobanî foram atacadas e mortas por um drone armado do estado turco, enquanto cumpriam as suas funções.

…e também Bashur, o Curdistão iraquiano

A estratégia da Turquia passa por continuar a expandir os territórios sob o seu controlo no norte da Síria, mas também em Bashur, o Curdistão iraquiano. Shengal é uma das regiões do curdistão iraquiano em que o turco voltou a intensificar os ataques contra bases, posições e escritórios do PKK e das YBS, numa nova ofensiva turca que se iniciou em 17 de Abril – a “Operação Claw Lock”.

As YBS, ou Unidades de Resistência de Shengal, são compostas por yazidis, a etnia maioritária em Shengal, e foram determinantes na resistência aos ataques do Estado Islâmico contra as populações da região, depois de o iraquiano e das Peshmerga, as forças do Governo Regional do Curdistão iraquiano, terem abandonado as suas posições face ao avanço das forças do ISIS. As únicas forças que vieram em auxílio dos milhares de yazidis nas montanhas de Shengal, onde estavam totalmente cercados pelo Estado Islâmico, foram o PKK e as YPG e YPJ.

Esta ofensiva turca em território iraquiano viola o direito internacional e foi condenada pelo próprio presidente iraquiano, embora pouca ou nenhuma atenção lhe tenha sido dada pelos meios de comunicação ocidentais. Como em todos os conflitos militares, vidas inocentes são ceifadas pelos bombardeamentos.

Em 15 de Junho, um dos bombardeamentos turcos atingiu o mercado da povoação de Sinuni, em Shengal. Dois civis morreram, entre eles uma criança de 12 anos que estava na loja do seu pai, e pelo menos 6 ficaram feridos, das quais 5 eram também crianças que estavam nessa mesma loja.

Mas os ataques não se limitam à região de Shengal. Em 21 de Maio, por exemplo, pelo menos 3 civis morreram em ataques de drones turcos na região de Sulaimaniyah e no de de Makhnur, separados por 150km de distância. Ambos estão a mais de 150km da fronteira turca.

Nos últimos anos, a Turquia cometeu muitas outras atrocidades nas diferentes partes do Curdistão – em Agosto do ano passado, por exemplo, bombardeou uma clínica onde um oficial do PKK estava se tratando, no Curdistão iraquiano. Três pessoas morreram no ataque.

O acordo trilateral

No memorando trilateral assinado no final da reunião realizada na terça-feira (28/6), a Suécia e a Finlândia comprometeram-se a:
– criar mesas de diálogo com a Turquia para uma maior coordenação em todas as esferas do governo;
– a apoiar a Turquia na luta contra o PKK;
– a terminar qualquer apoio às YPG e aos gulenistas;
– a endurecer a legislação dos seus países para lutar contra o terrorismo;
– a partilhar inteligência;
– a estabelecer marcos jurídicos para facilitar as deportações para a Turquia de membros de organizações supostamente terroristas;
– a perseguir as atividades dos grupos “terroristas” dentro dos seus países;
– a combater “a desinformação” e
– a levantar o embargo às exportações de armas.

Destacamos duas passagens do acordo, que põe em grave risco os direitos e liberdades das populações que habitam os dois países no que diz respeito ao internacionalismo e à com o Curdistão.

5. (…) A Finlândia e a Suécia comprometem-se a impedir as atividades do PKK e todas as outra organizações terroristas e as suas extensões, assim como atividades de indivíduos [que participem] em grupos afiliados ou por eles inspirados, ou redes ligadas a estas organizações terroristas.

8. (…) A Finlândia e a Suécia vão investigar e interditar quaisquer atividades de financiamento ou recrutamento do PKK e todas as outras organizações terroristas e as suas extensões, assim como grupos afiliados ou por eles inspirados ou redes (…)

Ou seja, de acordo com estas formulações, qualquer atividade como uma conversa sobre o Curdistão, um benefit para angariar fundos para Rojava, uma campanha de ou uma publicação a difundir umas brigadas internacionais, tudo isso passará a ser “perseguido” na Suécia e na Finlândia, ao abrigo de legislações “antiterroristas”. Tudo isto, claro, em nome da liberdade, da democracia e dos “valores ocidentais”.

A Turquia conseguiu tudo aquilo que tinha exigido da Suécia e da Finlândia. E ainda mais. Em troca de tudo isto, a Turquia simplesmente concordou em não bloquear o convite à entrada dos dois países na OTAN.

Recep Tayyip Erdoğan — Foto: Reprodução/Guilhotina.info

73 extradições: a nova exigência de Erdogan

E, no entanto, parece que tudo isto não chega. Alguém como Erdogan, quer sempre mais. No seu regresso da Cúpula da OTAN em Madrid, o presidente turco afirmou que quer ver como se manifestam na prática as decisões acordadas, antes da decisão final sobre a entrada dos dois países. “O trabalho não está terminado. (…) O longo processo começa com este convite. Não é claro quanto tempo vai demorar.”

A Turquia lembrou-se de apresentar ainda uma exigência de última hora: a extradição imediata de 73 pessoas que serão condenadas na Turquia por conexões com o PKK ou com os gulenistas. Caso isso não aconteça, Erdogan sugeriu que o parlamento turco poderia voltar a impor um veto à entrada de ambos os países na OTAN.

Já na quarta-feira, o ministro da justiça turco havia dito que os ministérios da justiça sueco e finlandês tinham os documentos turcos sobre 33 pessoas com alegadas ligações a essas organizações. Erdogan decidiu subir o sarrafo.

Isto pode revelar-se especialmente problemático para o processo de adesão à aliança, já que as populações de ambos os países são sensíveis ao tema das deportações, especialmente se forem levadas a cabo de forma sumária e sem respeitar os procedimentos legais. O presidente finlandês sublinhou que o memorando trilateral não inclui uma lista de indivíduos e que as extradições serão levadas a cabo de acordo com a legislação nacional e os acordos internacionais.

A primeira-ministra sueca foi à televisão pública para dissipar possíveis tensões e dúvidas que se possam se acumulando no seio da sociedade sueca:

Sei que há algumas pessoas que estão com receio que comecemos a caçar pessoas e a extraditá-las, e acho importante dizer que sempre seguiremos a legislação sueca e as convenções internacionais, e que nunca extraditamos cidadãos suecos.

Declarações da primeira-ministra sueca, Magdalena Andersson, à SVT
29 de Junho de 2022

Veremos. Como reza o ditado, “até ao lavar dos cestos é colheita”. O que é certo é que Erdogan está determinado em espremer tudo aquilo que conseguir desta nova expansão da OTAN. Por outro lado, o histórico da Suécia neste está longe de ser imaculado. Afinal, a Suécia foi instrumental no processo de extradição de Julian Assange ao aceitar avançar com acusações falsas sob ordens dos EUA.

OTAN: segurança para a Finlândia e a Suécia?

Os pedidos de adesão da Suécia e da Finlândia à OTAN são feitos para uma suposta segurança dos dois países e do potencial de dissuasão que representa o Artigo 5° a qualquer estado que pense em invadir um estado-membro da aliança.

No entanto, para além de ambos os países serem parceiros da OTAN e de participarem de forma recorrente em exercícios militares da aliança, ambos estão já salvaguardados pelo Artigo 42.7 do Tratado de Lisboa, em vigor desde 2009.

Artigo 42.7 – Tratado de Lisboa (UE)
Se um estado membro for vítima de agressão armada no seu território, os outros estados membros deverão ter, perante isso, uma obrigação de ajuda e assistência por todos os meios em seu poder, de acordo com o Artigo 51 da Carta das Nações Unidas. (…)

Fonte: Eur-lex

Este artigo tem uma formulação menos clara do que o Artigo 5 da OTAN, assim como um adendo que salvaguarda “o caráter específico das políticas de segurança e defesa de certos estados membros” (havia até agora 7 estados da UE com políticas oficiais de neutralidade, cada um com diferentes matizes). Ainda assim, o artigo 42.7 estabelece o princípio da reação coletiva da UE na eventualidade de uma agressão militar a um dos estados.

Fica por perceber se as elites políticas da Suécia, da Finlândia e de todo o Ocidente acreditam mesmo que continuar a expandir o aparelho militar da OTAN em direção às fronteiras da Rússia, traz alguma segurança em matéria de defesa. Moscou já avisou que a resposta a esta expansão, com todas as bases militares, movimentação de tropas e mobilização de armamento que ela implica, será também militar. Não se percebe se a ideia é a paz, ou precisamente provocar uma reação da Rússia que justifique desencadear a tão ansiada guerra aberta entre potências nucleares.

Face à ofensiva contra Rojava, um único caminho: Internacional

O que se percebe é que, para os povos do Curdistão, esta expansão da OTAN não significa paz, mas mais guerra e destruição, não significa liberdade nem democracia, mas o avanço do imperialismo turco e da barbárie dos grupos fundamentalistas islâmicos seus aliados. Os altos representantes do Ocidente parecem cada vez menos preocupados com o destino do povo curdo, olhando desinteressadamente o sangue que escorre pelo altar da “segurança” dos povos brancos.

As Forças Democráticas Sírias, ou SDF, que agrupam forças curdas e várias outras forças do norte da Síria, tiveram durante bastante tempo apoio da aliança internacional contra o Estado Islâmico, liderada pelos EUA, um apoio que se tem vindo a tornar cada vez mais “formal”. As milícias curdas, esses ícones aliados do Ocidente na luta contra a barbárie do ISIS (pelo menos enquanto esta fazia manchetes), já foram abandonadas há muito. Quando da invasão e ocupação do cantão curdo de Afrin em 2018, e quando da “Operação Nascente de Paz” em 2019, não houve reportagens emotivas nas televisões ocidentais nem discursos inflamados dos líderes do “mundo livre” contra a invasão e ocupação militar turca de partes de Rojava e da Síria. 

Com a Rússia também pouco interessada em dar apoio à Rojava, e com as autoridades do Curdistão iraquiano mais próximas ao regime turco que às forças de Rojava, apenas resta às SDF esperar ter o apoio do exército de Damasco para frustrar o próximo ataque turco.

Às SDF e Rojava resta também, e acima de tudo, a internacional – construída desde baixo, nas ruas, nos bairros, nas cidades e vilas, nos locais de trabalho, nas universidades.

Manifestação em Torino, na Itália, contra a invasão turca de Rojava, 13 de Outubro de 2019 — Fotografia do artigo Curdistão / O dia X chegou. A invasão Turca já começou.

A “solidariedade” que vem de cima, e que está sempre pronta a invocar as “vidas humanas” (apenas) quando é conveniente, não salva quaisquer vidas. Porque, lá em cima, professam a morte. É por isso que os líderes do “mundo livre” estão confortáveis em sentar-se à mesa com Erdogan enquanto falam de democracia, liberdade e valores ocidentais. É por isso que se aliam com forças de extrema direita na América Latina, no Oriente Médio, na Europa e onde quer que isso sirva as suas agendas. É por isso que condenam esta ou aquela guerra, mas eles também invadem e ocupam, eles também mantém as suas colônias e o domínio imperial sobre territórios ocupados.

Na eventualidade de qualquer nova ofensiva contra Rojava por parte do estado turco, terá de ser desencadeada uma onda de solidariedade internacional com a resistência curda que coloque o tema no debate público e quebre o provável bloqueio midiático. Uma onda de solidariedade que é especialmente importante que atinja com força a Europa – que chame a atenção das nossas sociedades para a cumplicidade dos nossos governos com os planos imperialistas de Erdogan e as atrocidades das forças turcas, que exija um embargo à exportação de armas para a Turquia e que pressione os governos ocidentais a exercer toda a pressão diplomática sobre o governo turco no sentido de conseguir um cessar-fogo o mais célere possível.

Lisboa, 19 de Outubro de 2019 — Do artigo Curdistão / “Rojava vencerá, o fascismo cairá!”


Artigo da
Guilhotina.info | Por Francisco Nóbrega
Tradução: Mídia Quinze Zero Oito (1508)

Mídia1508

A 1508 é um coletivo de jornalismo independente anticapitalista, dedicado a expor as injustiças sociais brasileiras e a noticiar as mobilizações populares no Brasil e no mundo.

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