Milhares de haitianos têm ido às ruas protestar na capital Porto Príncipe e nas principais cidades do país, para exigir a renúncia do presidente Jovenel Moïse. As manifestações tiveram início no dia 7, data da queda da ditadura de Jean-Claude Duvalier, mais conhecido como “Baby Doc”, há 33 anos e da posse de Moïse em 2017.
Duas pessoas foram mortas pela repressão na quinta-feira e mais uma no sábado. Barricadas foram erguidas pelos revoltosos em algumas áreas e carros foram queimados, inclusive viaturas policiais. A casa do presidente foi apedrejada. Pelo menos 14 policiais foram feridos.
Dois dias antes do início dos protestos, o governo Moïse havia decretado “emergência econômica nacional”, se preparando para “apertar os cintos” de quem já não tem quase nada, sob o pretexto do “déficit orçamentário” descontrolado.
O envolvimento de Moïse em um escândalo de desvio de verbas vindas do governo venezuelano, através do programa PetroCaribe, jogou mais lenha na fogueira da indignação popular. Conhecido como o ‘Homem Banana’, sua empresa, a Agritans, que atua no ramo bananeiro, recebeu, sem nenhum contrato formal, um financiamento milionário para construir uma estrada. A obra nunca ficou pronta.
Devastado pela ditadura de décadas, pelas intervenções estadunidenses e por um terrível terremoto em 2010, o Haiti é impactado também pela atual crise na Venezuela, que fornecia petróleo a preços mais baratos ao país centro-americano (o mais pobre do Caribe). Como resultado, os haitianos sofrem com a escassez de combustível e apagões elétricos.
Afetada por uma inflação superior a 15% por dois anos consecutivos, a economia do país enfrenta uma acelerada desvalorização da moeda nacional, o gourde, em relação ao dólar, o que aumenta os preços dos produtos de primeira necessidade, majoritariamente importados.
De acordo com a Coordenação Nacional de Segurança Alimentar, 4,5 milhões de haitianos passam por insegurança alimentar. Com o agravamento da crise, estão de volta as mortes por afogamento, nos mares do Caribe, de refugiados que tentam deixar a ilha fugindo da fome. Somente na semana passada, foram 28, que estavam em busca da sorte nos Estados Unidos.
Em declarações ao jornal Le Nouvelliste, o assessor especial de Moïse, Guichard Doré, afirmou que o déficit orçamentário “será drasticamente reduzido a um bilhão de gourdes por mês” – o que significaria um corte da ordem de dois terços – e todos os gastos “não essenciais” serão podados, para aliviar a pressão sobre a cotação do dólar.
Já é a segunda insurreição popular enfrentada pelo atual governo, que, além de corrupto, tem se caracterizado também por sua submissão ao capital estrangeiro. Em 2018, o primeiro ministro Jack Guy Lafontant renunciou ao cargo, após semanas de protestos provocados por um anuncio governamental de que aumentaria o preço dos combustíveis. A medida visava agradar ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que havia condicionado a concessão de novos empréstimos ao Haiti à redução dos subsídios estatais ao setor de petróleo.
As manifestações começaram no dia 6 de julho, quando o governo declarou que subiria o preço do galão de gasolina para U$ 4,60 (uma majoração de 38%). Isso em um país onde a renda média dos cidadãos é de U$ 2,00 por dia e em que 78% da população sobrevive com menos do que isso. O pronunciamento oficial foi feito durante a partida das quartas de final da Copa da Fifa entre Brasil e Bélgica – claramente no intuito de que a notícia passasse despercebida. O plano, no entanto, não surtiu o efeito esperado. Poucas horas após o término do jogo, as ruas de diversas cidade já estavam tomadas por multidões enfurecidas.
Em Porto Príncipe, as principais vias foram bloqueadas por manifestantes. Bancos e estabelecimentos comerciais, principalmente os pertencentes a conhecidas famílias da elite local, foram alvo de depredações e saques.
Reginald Boulos, presidente da Câmara Nacional de Indústria e Comércio, foi um dos maiores prejudicados. Defensor dos credores internacionais do Haiti, ele teve três de seus supermercados completamente destruídos pelas chamas. Também foram incendiados o tribunal de Petit-Goâve e o prédio do Diretório Geral de Impostos.
Muitos policiais abandonaram seus postos. Um oficial de polícia, Robert Scutt, morreu enquanto tentava atravessar uma barricada. Do lado dos manifestantes, é dificil obter informações precisas sobre a quantidade de mortes. A Polícia Nacional do Haiti (PNH) fala em três, a oposição em 11.
Por meio de discursos televisionados e postagens em redes sociais, o governo tentou em vão aplacar a ira das massas. “Eu lhes peço paciência, porque a visão da administração é clara. Ela tem um programa claro que continua a executar” disse Lafontant diante das câmeras, na manhã de 7 de julho. Os protestos apenas cresceram.
Na tarde do mesmo dia, Moïse se viu obrigado a se pronunciar ele mesmo, anunciando que não mais haveria o aumento. Mas já era tarde demais.
“Não tem outra alternativa. Ele tem de ir” afirmou na ocasião o professor Auguste “Gougousse” D’Meza, um consultor educacional e político de Porto Príncipe, ao jornal Miami Herald. “O povo não acredita mais nele”, diz Auguste D’Meza. Os recentes acontecimentos nas ruas do país parecem confirmar o parecer.