A milícia é o Estado

No Rio de Janeiro, a milícia não é um "poder paralelo", mas a faceta mais concreta do poderio estatal.

Imagem: Reprodução/Redes Sociais

Na última segunda-feira (23), a principal milícia do Rio de Janeiro levou terror à zona oeste da capital fluminense, incendiando pelo menos 35 ônibus e um trem. A ação dos paramilitares foi uma retaliação à morte pela Civil do miliciano Matheus da Silva Rezende, o Faustão, sobrinho de Luiz Antônio da Silva Braga, o Zinho, apontado como líder do grupo.

Enquanto a cidade era mergulhada no caos, o governador Cláudio Castro mais uma vez causou revolta com seu infame perfil do X, antigo Twitter, onde costuma comemorar cada matança produzida por sua polícia, autora das maiores chacinas da história do Estado.

“Nossas ações para asfixiar o crime organizado têm trazido resultados diários”, celebrou. Os resultados são mesmo bastante conhecidos. Sobretudo, pela população mais pobre – volta e meia, impedida de circular livremente por onde mora. Quando não são os trabalhadores da zona oeste sem saber se voltarão vivos ou mortos pra casa, são as crianças da sem aula por conta dos tiroteios provocados pela PM, como na semana passada.

Aliás, quem acompanhou com um pouco mais de atenção o noticiário sobre as últimas “operações” no conjunto de favelas na zona norte recebe sem surpresa as cenas de segunda-feira. Deflagrada após uma reunião do bolsonarista Castro com o Ministro da Justiça de Lula, Flávio Dino, a infernizou a vida de 14 comunidades mareenses. Somente duas não estiveram no escopo da ação: a de Roquete Pinto e a da Praia de Ramos. Justamente as duas dominadas por uma milícia.

A exemplo dos seus colegas da zona oeste, os milicianos da também exploram moradores e comerciantes por meio das mais variadas extorsões e agiotagens. São ainda responsáveis por homicídios – como o do estudante Hugo Miguel da Silva, brutalmente espancado e jogado no meio da Avenida por ter urinado perto de uma praça.

Fazem isso já há mais de quinze anos, ao longo dos quais quase nunca foram incomodados pela polícia. Fato ainda mais notável quando se observa que apenas uma rua separa a Roquete Pinto do Comando de Operações Especiais da PM.

Situações assim estão longe de serem casos isolados. Uma pesquisa do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da UFF mostra que, na década de 2010, período em que esse tipo de grupo armado já controlava mais de metade do território carioca, nem mesmo 10% das incursões policiais foram realizadas nos bairros dos milicianos.

Serviu como sustentáculo dessa política a construção ideológica segundo a qual as milícias enfrentariam tráfico para levar segurança a favelas e subúrbios – e não para para lucrar exigindo taxas do comércio local e monopolizando a venda de gás, água e TV por assinatura. Quando prefeito, em 2006, Cesar Maia se referia a elas como “autodefesas comunitárias” e “mal menor do que o tráfico”. Então candidato à Prefeitura, Eduardo Paes era um defensor ainda mais ardoroso. Perguntado a respeito pela Rede Globo, chegou a afirmar que as “polícias mineiras” teriam trazido “tranquilidade” ao cidadão e ajudado o Estado a “recuperar a sua soberania”.

Em um ponto, a declaração de Paes, por mais estapafúrdia que soe hoje, não deixa de apontar para uma verdade fundamental, que muitos tentam recalcar. No Rio de Janeiro, a milícia não é um “poder paralelo”, mas sim a faceta mais concreta do poderio estatal. Em uma entrevista concedida à agência Pública em 2019, o sociólogo José Cláudio Souza Alves soube exprimir essa máxima de maneira lapidar: “A milícia é o Estado”.

Ele desenvolve: “não me venha falar que existe uma ausência de Estado. É o Estado que determina quem vai operar o controle militarizado e a segurança daquela área.”

É isso que torna a milícia muito mais poderosa (e perigosa) do que qualquer facção de narcotraficantes. Quase diariamente, varejistas de entorpecentes são mortos em confrontos com a polícia. Os milicianos são a polícia (ou sócios diretos dela). Suas mortes são raras e geralmente acontecem em confrontos entre eles mesmos.

Por serem, em grande parte, treinados pelo Estado, atiram bem e não deixam rastro, sendo os assassinatos por encomenda mais um filão de negócios que exploram. Alguns, como o ex-capitão do BOPE Adriano da Nóbrega (morto pouco tempo depois de vir à tona a sua ligação com o clã Bolsonaro) e Ronnie Lessa (preso sob a acusação de ter executado a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes ) fizeram o seu nome como matadores atuando a mando de bicheiros. É da máfia do bicho, por sinal, que a milícia herda muito do seu modus operandi, como a execução bem planejada de seus inimigos, sem que estes possam reagir, e a corrupção de policiais e membros do sistema de justiça.

Outra característica comum entre bicheiros e milicianos é a busca por fazer representantes na política. Mas quanto a esse quesito, os aprendizes superaram largamente os mestres. Ao lado da bancada evangélica, a mílicia está hoje entres as principais forças conservadoras existentes nos legislativos municipais e estadual do Rio.

É virtualmente impossível para um governador ou prefeito da capital ou Baixada se manter no poder sem compor com esses segmentos. Ilustre desconhecido até 2018, Wilson Witzel não ascendeu ao Palácio Guanabara apenas graças ao seu discurso populista penal. Foi essencial para a sua vitória o apoio de neopentecostais e milicianos – crucial também para garantir a maioria obtida no Rio por nos dois últimos pleitos presidenciais.

Tributário dessa mesma estrutura, agora é Cláudio Castro quem se vê na saia justa de ter de administrar a crise que ela própria gerou. Sua resposta, como não poderia deixar de ser, é risível. O jornalista Octávio Guedes a descreveu bem, a propósito da primeira coletiva do governador após os distúrbios:

“Sem qualquer plano, visão estratégica ou política estruturante, o governador apelou para bravatas. E citou, inacreditavelmente, os nomes de três bandidos como se fosse um técnico de futebol anunciando a escalação do meio-campo. “Zinho, Tandera e Abelha. Não descansaremos até prendermos”.

É a reedição da falida narrativa do inimigo público número 1, como se a mera retirada de circulação deste ou daquele “mau elemento” fosse fazer a milícia magicamente desaparecer.

Seria, no entanto, ingênuo esperar algum posicionamento mais consequente sobre essa questão vindo de um governo como o de Castro, mergulhado até o pescoço em escândalos na segurança pública, com direito a prisão de dois ex-Secretários por envolvimento com o crime organizado e entrega do cargo de chefe da Civil a deputados da sua base eleitoral.

Acreditar que o Estado – este Estado – vai efetivamente combater as milícias é acreditar que ele vai combater a si mesmo. Não vai acontecer. Não se pode saltar a própria sombra.

Rafael Daguerre

Fotógrafo, Repórter, Editor e Documentarista

Um dos fundadores da Mídia1508. "Ficar de joelhos não é racional. É renunciar a ser livre. Mesmo os escravos por vocação devem ser obrigados a ser livres, quando as algemas forem quebradas" ― Carlos Marighella.

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