A fúria da periferia francesa contra a violência policial

Jovem de 17 anos é assassinado por um policial após furar uma blitz em Nanterre, subúrbio de Paris, e desata uma verdadeira revolta popular.

Manifestantes enfrentam a tropa de choque da polícia durante confrontos em Nanterre, subúrbio de Paris, em 29 de junho — Foto: Christophe Ena/AP Photo

A morte de Nahel M., um descendente de argelinos e marroquinos de apenas 17 anos baleado por um policial após furar uma blitz em Nanterre, subúrbio de Paris, desatou uma revolta de grandes proporções em diferentes regiões da França, reacendendo o debate internacional sobre o racismo e a violência policial.

A versão da polícia foi a de que, ao fugir do bloqueio, o adolescente teria tentado atropelar um dos agentes que não teria tido outra alternativa senão atirar. Os veículos da imprensa corporativa CNews e BFM-TV reproduziram a narrativa oficial, como é quase sempre o caso, mas não tardaram a ser desmentidos por imagens de celular feitas por um transeunte publicado nas redes sociais. No registro se vê nitidamente dois policiais parados ao lado do veículo, um deles apontando sua arma para a janela do motorista à queima-roupa, e não em frente, e que em nenhum momento sua integridade física foi posta em risco. Embora não esteja claro quem as proferiu, as palavras “Vou colocar uma bala na sua cabeça” podem ser ouvidas antes que o carro começasse a acelerar e o tiro fatal fosse disparado.

“Ele viu um rosto de árabe, um garotinho, e quis tirar a vida dele”, desabafou a mãe de Nahel, Mounia, referindo-se ao agente que disparou a arma.

O motorista da ambulância que veio recolher o corpo, ao reconhecer a vítima, não controla a sua indignação e grita aos policiais: “ele tinha 17 anos, cara de menino, fizeram isso por ele não ter habilitação… eu conhecia ele, era um moço tranquilo, com a mãe sozinha.” E profetiza: “agora a cidade dorme, mas daqui e pouco vai acordar e eles vão descer em cima de vocês.”

Frame do vídeo em que dois policiais questionam o motorista (Nahel), com um deles apontando a arma para a janela do carro, em Nanterre, na França, no dia 27 de junho de 2023. A agência de notícias francesa AFP confirmou ser este o momento do assassinato. Nahel foi baleado no peito. Imagem de @Ohana_Fgn/Twitter.

Já na tarde de 27 de junho, data do homicídio, a notícia foi se espalhando e moradores das periferias reagiram com violência à violência do Estado, em confrontos que se estenderam por praticamente uma semana inteira.

Os manifestantes ergueram barricadas, incendiaram carros, ônibus, prefeituras e delegacias de polícia. Do outro lado de Paris, manifestantes incendiaram a prefeitura do subúrbio de Clichy-sous-Bois.

Na tranquila cidade de Pau, nos Pirenéus, no sudoeste da França, um coquetel molotov foi jogado em uma delegacia de polícia, informou autoridades locais. Veículos foram incendiados em Toulouse e um bonde foi incendiado em um subúrbio de Lyon.

Em Montreuil, um subúrbio a leste de Paris, os manifestantes quebraram as vitrines de empresas e as saquearam. Em Aubervilliers, um subúrbio ao norte, carcaças de metal carbonizadas eram tudo o que restava de uma dúzia de ônibus de uma estação depois que manifestantes os incendiaram.

A revolta deixou marcas pelas ruas de várias vilas e cidades. Três andares de um prédio de apartamentos foram incendiados em Villeurbanne, perto de Lyon. Todos os sete carros da polícia na cidade de Neuilly sur Marne, perto de Paris, foram queimados, junto com um bonde em Clamart e parte do prédio da prefeitura em Evreux.

Manifestantes entraram em confronto com policiais em Marselha, no sul da França, na sexta-feira — Foto: Christophe Simon/Agência France-Presse via Getty Images

Pelo último balanço do Ministério do Interior francês, 12.200 carros foram incendiados, além dos danos provocados em 1.100 imóveis, incluindo prédios, estações policiais, bancos e prefeituras. Além de Paris, cidades como Marselha, Lyon, Lille e Tolouse registraram a ocorrência de levantes populares, que também ultrapassaram as fronteiras da continental, com manifestações sendo realizadas, com maior ou menor intensidade, na Bélgica e nos territórios franceses das Caraíbas e da Ilha da Reunião, ao largo de Madagáscar.

Mais de 45.000 policiais são mobilizados para conter os saques e depredações. O toque de recolher é decretado em três localidades da região metropolitana parisiense: (Clamart (Hauts-de-Seine), Neuilly-sur-Marne (Seine-Saint-Denis) e Savigny-le-Temple (Seine-et-Marne). Em 9 dias, 3.915 prisões são efetuadas, e os perfis apresentam alguns traços comuns: muito poucos têm antecedentes criminais e tendem a ter entre 14 e 18 anos. Em certas noites, a idade média dos desordeiros presos é de apenas 17 anos. Um rapaz de vinte anos morre na comuna de Petit-Quevilly, caindo de um telhado após a repressão.

Em uma reunião com mais de 200 prefeitos, na última terça (4/7), o presidente Emmanuel Macron disse que o “auge” da convulsão social já passou e que iria “tentar compreender” o motivo dos atos. Antes já havia ensaiado responsabilizar os videogames e a internet pela sublevação juvenil – chegando, inclusive, a cogitar uma eventual censura das mídias digitais, caso episódios assim voltem a se repetir.

Já o ministro da Justiça, Eric Dupond-Moretti, prefere ir na linha de culpabilizar as famílias, as ameaçando com sanções judiciais caso não consigam “segurar os filhos”.

Mounia, cujo filho foi morto pela polícia francesa, em cima de uma van durante marcha em Nanterre na quinta-feira (29/06) — Foto: Michel Euler/Associated Press

Escalada de

Os motivos que Macron alega ter dificuldade em compreender são bastante óbvios quando se olha para os dados. E nada têm a ver com jogos eletrônicos ou com a ausência de disciplina familiar.

Embora o uso letal de armas de fogo seja menos comum na do que no Brasil, o que aconteceu em Nanterre não foi um caso isolado. Em 2022, 13 pessoas foram mortas ao tentar se evadir da polícia no país, tendo outras três, incluindo Nahel, perdido a vida em circunstâncias semelhantes neste ano. De acordo com o site “Basta!” nos anos 2020, 2021 e 2022 a letalidade policial no país mais do que dobrou em comparação com a média registrada na década de 2010.

A brecha jurídica que possibilitou essa escalada foi aberta por uma lei promulgada em 2017 pelo então presidente François Hollande, autorizando as forças de segurança a abrirem fogo em algumas situações de fuga. ainda lembrar que um estudo daquele mesmo ano mostrou que, se você fosse percebido como um homem árabe ou negro, tinha 20 vezes mais chances de ser submetido a uma checagem policial do que o resto da população. E os bairros da classe trabalhadora onde as revoltas ocorrem são profundamente carentes de recursos em termos de serviços públicos, com taxas de desemprego de 16 a 20% contra uma média nacional de 7 a 8%.

Nos anos seguintes, já sob o comando de Macron, o Estado francês segue estimulando e acobertando a brutalidade de suas tropas, que usa sistematicamente para conter a insatisfação da população diante das sucessivas medidas de austeridade implementadas pelo governo.

“Nesses bairros, a pobreza e a insegurança são realidades concretas. Por isso essa raiva é política” explica Fabien Truong, professor de sociologia da Universidade de Paris-VIII, em entrevista ao jornal Le Monde. Ele destaca que muitos dos manifestantes são meninos da mesma idade de Nahel e que reagem “de forma íntima e violenta” pela simples razão de que a vítima poderia ter sido um deles: “Todos os adolescentes desses bairros têm lembranças de interações negativas e violentas com a polícia”.

“O país continuará a arder até conseguirmos justiça”, disse um manifestante em Nanterre — Foto: Michel Euler/Associated Press

A revolta de 2005

O cenário presente evoca ainda o outubro de 2005, quando Zyed Benna, de 17 anos, e Bouna Traoré, de 15, morreram eletrocutados em uma subestação elétrica em Clichy-sous-Bois, na periferia de Paris, tentando escapar de uma revista policial. Na ocasião, grupos de jovens suburbanos saíram às ruas para expressar a raiva latente de uma população marginalizada e oriunda de ex-colônias francesas.

Os conflitos levaram Dominique Villepin, à época primeiro-ministro, a instaurar o estado de emergência pela primeira vez desde a Guerra da Argélia, permitindo o toque de recolher sempre que o governo julgasse necessário. Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior e depois presidente da França, chamou os participantes dos protestos de “escória”.

Foram 19 noites consecutivas de distúrbios, com quatro mortos, 8,3 mil carros queimados e 2.921 manifestantes presos. Dez anos depois, os dois policiais indiciados pela morte dos dois jovens foram absolvidos.

Ônibus foram queimados durante a noite do dia 29 de junho em um local de transporte público em Aubervilliers, perto de Paris — Foto: Yoan Valat/EPA, via Shutterstock

Na insurreição de dezoito anos atrás, a tensão econômica e racial se fez sentir, mas foi impenetrável para o restante da sociedade, fazendo com que a quase totalidade dos partidos institucionais (inclusive, os ditos de “esquerda”) repudiassem as ações dos revoltosos, deixando o livre o caminho para a sua criminalização.

Agora, no entanto, há marcantes diferenças. A primeira delas é que desta vez o movimento irrompe menos de três meses após as manifestações que pararam o país contra a reforma do sistema previdenciário imposta por Macron, à revelia da forte oposição da maioria dos franceses – que não deixa de relacionar os dois eventos. Na visão de muitos críticos ao atual presidente, aquilo que novamente fica patente, malgrada toda a retórica pretensamente “compreensiva”, é o viés autoritário do seu governo, do qual já havia dado fartas provas – por exemplo, a maneira brutal como lidou com os “coletes amarelos” em 2018, que chegou a ser repreendida até mesmo pela Organização das Nações Unidas.

Não por acaso, na última sexta-feira, o organismo multilateral voltou a admoestar o país, pedindo que “enfrente seriamente os profundos problemas de racismo entre as forças de segurança”. A respondeu que “qualquer acusação de racismo sistêmico ou discriminação por parte das autoridades na França” era “totalmente infundada”. Nenhuma solução política para atacar a questão foi proposta pelo governo.

Terceira noite de protestos no subúrbio parisiense de Nanterre, na França, sexta-feira (30) — Foto: Gonzalo Fuentes/Reuters

A emergência do Black Lives Matter nos Estados Unidos (e suas repercussões ao redor do globo) foi outro fator a influenciar a percepção do conjunto dos franceses sobre os recentes acontecimentos domésticos, refletindo-se em um apoio popular difuso à causa antirracista, que levou celebridades como o ator Omar Sy e as estrelas de futebol Kilian Mbappe, Jules Konde, ou ainda Aurelien Tchouameni a prontamente condenarem o assassinato e a se solidarizarem com a família.

Por outro lado, a extrema direita não deixa de ocupar hoje um espaço consideravelmente maior no debate público do país do que aquele que tinha há duas décadas. Previsivelmente, seus demagogos e propagandistas aproveitam a oportunidade para, mais uma vez, investir no clichê da “guerra civilizacional”, conclamando os cidadãos a colocarem eles próprios ordem nas ruas, já que o governo não estaria sendo capaz de fazê-lo.

Como resultado, milícias armadas com tacos de beisebol foram avistadas nas cidades de Angers e Lorien, onde ajudaram a polícia a fazer prisões, e em Lyon, onde 50 fascistas marcharam pelas ruas gritando “estamos em nosso lar”, em uma clara mensagem anti-imigração. Favor que, por sinal, foi retribuído pela categoria dos profissionais da repressão, com dois de seus sindicatos emitindo notas despudoradamente fascistoides nos últimos dias, declarando “guerra”, em nome das forças policiais, ao que descreveram como “pestes” e “selvagens”.

Veículos queimados no estacionamento de um supermercado em Schiltigheim, leste da França, na quinta-feira (29/06) — Foto: Patrick Hertzog/Agence France-Presse via Getty Images

De maneira não muito diferente do que ocorre com o bolsonarismo no Brasil, ou com o trumpismo nos EUA, a essas milícias reais não deixa de estar associada também uma virtual. É o que fica evidente ao se constatar a quantidade de postagens que circulam pelas redes em que Nahel é apresentado como um delinquente, traficante de drogas – afirmação sem qualquer fundamento e vigorosamente negada pelos advogados da família. Mas ainda que fosse verdadeira, estaria justificada a execução sumária?

Também à semelhança de seus correspondentes brasileiro e estadunidense, o neofascismo francês contemporâneo tem demonstrado uma capacidade de angariar engajamento (inclusive, financeiro) que não exibia no passado. Uma campanha de crowdfunding destinada a arrecadar dinheiro para o policial que assassinou Nahel alcançou 1,6 milhão de euros (R$ 8,57 milhões) nesta quarta-feira (5).

A coleta foi organizada pelo militante de ultradireita Jean Messiha, ex-porta-voz nas últimas eleições presidenciais do candidato Éric Zemmour (notório ideólogo da racista tese do “separatismo islâmico”, também advogada por Macron). Na descrição publicada no site francês que hospeda a iniciativa, é explicado que a vaquinha foi criada “em apoio à família do policial de Nanterre, Florian M., que fez seu trabalho e hoje está pagando caro por isso”. Enquanto isso, as promessas de arrecadação de fundos para a família da vítima chegou a 400 mil euros (R$ 2,14 milhões).

Bombeiro tenta apagar carro incendiado por manifestantes — Foto: Alain Jocard/Agence France-Presse via Getty Images

Seria, porém, precipitado concluir, como já desejam alguns, que o saldo das recentes sublevações será necessariamente o fortalecimento do reacionarismo no país. Não se pode esquecer que foram justamente protestos dessa mesma natureza que acabaram por desempenhar um papel fundamental na derrocada de Trump.

De resto, nenhum cálculo eleitoral pode servir de pretexto para que se deslegitime a justa rebelião dos jovens dos subúrbios franceses. Diferente dos pregadores da extrema direita, a guerra que estão travando nada tem de imaginária e não foi, de nenhum modo, iniciada por eles. Trata-se da guerra empreendida pelo imperialista Estado francês contra as pessoas pobres e racializadas, estejam elas dentro ou fora do seu território nacional.

Na França, como no Brasil, a luta contra o não pode vir separada da construção de um projeto alternativo que saiba escutar as vozes dos setores mais oprimidos da classe trabalhadora. Um “progressismo” que espera deles que simplesmente se deixem assassinar pacificamente – ou que os recrimina por assim não o fazer – em pouco ou nada se distingue daquilo que diz combater.

O jovem Nahel M. de 17 anos — Foto: Arquivo Pessoal

Mídia1508

A 1508 é um coletivo de jornalismo independente anticapitalista, dedicado a expor as injustiças sociais brasileiras e a noticiar as mobilizações populares no Brasil e no mundo.

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