Estátua de Cabral é incendiada em protesto contra marco temporal no Rio

Defendida por ruralistas e pelo governo Bolsonaro, o marco temporal é a teoria segundo a qual os indígenas apenas teriam direito às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Foto: Reprodução/Twitter
Manifestantes colocaram pneus em volta da estátua e atearam fogo, deixando boa parte do monumento manchado de preto. Além disso, foi colado um cartaz dizendo: "Marco Temporal é genocídio. PL 490 Não" — Foto: Reprodução/Twitter

Na madrugada da última terça-feira (24), a estátua do colonizador Pedro Álvares Cabral, no Largo da Glória, na zona sul do Rio de Janeiro, foi incendiada e pichada em um ato contra o marco temporal e o Projeto de Lei 490. Os manifestantes colocaram pneus em volta da estátua e atearam fogo, deixando boa parte do monumento manchado de preto. Além disso, foi colado um cartaz dizendo: “Marco Temporal é genocídio. PL 490 Não”.

Os administradores do perfil “Coletivo Uruçu Mirim” divulgaram uma nota reivindicando a autoria da ação no Twitter, mas tiveram sua conta censurada pela rede social. “Queimamos a estátua de Cabral para destruir tudo que ele simboliza ainda nos dias atuais, em protesto contra o Marco Temporal e o genocídio indígena continuado” afirmava o texto.

“Para lembrar que havia vida aqui antes de Cabral e para que essa vida continue existindo. Não pararemos de destruir seus símbolos para que um mundo novo possa nascer” concluía o manifesto.

A Luta contra o Marco Temporal

Defendida por ruralistas e pelo governo Bolsonaro, o marco temporal é a teoria segundo a qual os apenas teriam direito às terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A tese será discutida nesta quarta-feira (25) pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na análise do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, contra uma reintegração de posse conseguida pelo governo de Santa Catarina para expulsar a comunidade indígena Xokleng de Ibirama-Laklaño de seu território.

Embora trate de um caso específico, o resultado do julgamento terá consequências para a demarcação de todas as terras do país. Isso porque em fevereiro de 2019, o pleno do tribunal decidiu dar “repercussão geral” ao processo, o que significa que a decisão que for tomada deverá ser uma referência para todas os litígios semelhantes em andamento no judiciário brasileiro.

Por esta razão, o julgamento é acompanhado com grande atenção e apreensão pelo movimento indígena. Desde o início da semana, mais de 6 mil ativistas de 112 etnias acampam em como forma de pressionar os ministros da Corte.

Para os defensores dos direitos das populações nativas, o marco temporal deve ser rechaçado, já que muitas delas foram expulsas de suas terras tradicionais por latifundiários, enquanto outras sofreram migrações forçadas pelo próprio Estado.

A construção de estradas na durante a ditadura militar (1964-1985) é um exemplo desses deslocamentos forçados. Aldeias que estavam no traçado das estradas foram removidas, rompendo, de forma abrupta, toda uma relação ancestral da comunidade com aquele território. Anos antes, ainda na Amazônia, comunidades inteiras sofreram remoções para serem substituídas pelos seringais.

A história do povo Xokleng, no centro da disputa judicial, é outra que ilustra como poucas este processo. Poucas etnias foram tão perseguidas pelos “bugreiros” (caçadores de índios), ao ponto de quase ter sido dizimada. O estudo Os Índios Xokleng – Memória Visual, publicado em 1997 pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos, traz relatos impressionantes (e revoltantes) sobre as violências que foram praticadas.

“Primeiro, disparavam-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão”, relata na obra o miliciano Ireno Pinheiro, sobre as expedições que realizava no interior de Santa Catarina até os anos 1930 para exterminar a mando de autoridades locais.

“O corpo é que nem bananeira, corta macio”, prossegue o bugreiro na descrição dos ataques. “Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança”, completa.

Os administradores do perfil “Coletivo Uruçu Mirim” divulgaram uma nota reivindicando a autoria da ação no Twitter, mas tiveram sua conta censurada pela rede social — Foto: Reprodução/Twitter

A discussão será retomada pelo STF após dois adiamentos este ano. Ela já havia sido agendado para o dia 11 junho, mas o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas. Com a data marcada para 30 de junho, os povos originários fizeram uma forte mobilização nacional.   Rodovias foram fechadas em vários pontos do país, como Rio, São Paulo, Santa Catarina, Maranhão e Roraima, pelos indígenas. Em Brasília, um grupo de lideranças fez uma vigília em frente ao STF com rituais e cânticos, enfrentando as baixas temperaturas em Brasília.

No dia 22 de junho, policiais e entraram em confronto em frente ao Congresso Nacional. Os manifestantes tentavam barrar a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara do Projeto de Lei 490, de 2007, que tenta impor este mesmo marco temporal, além de abrir caminho para empreendimentos predatórios dentro de terras indígenas, como o garimpo, o plantio de soja transgênica e a construção de hidrelétricas. Apesar das manifestações, o projeto foi aprovado com folga por uma maioria de deputados ligados ao bolsonarismo e outros setores da direita.

Na visão do cacique Babau Tupinambá, importante liderança indígena do sul da Bahia, o discurso do marco temporal representa uma ameaça direta à própria existência do seu povo:

“É impossível criar um marco temporal para nós, povos porque quando Cabral invadiu aqui, foi escrita a carta a Pero Vaz de Caminha dizendo o dia que chegaram e quem eles encontraram. Ou seja, eles mesmos declaram que já nos encontraram aqui. Nós já estávamos aqui antes do povo branco. Não tem como criar um marco em cima do nosso direito, da nossa existência, da nossa história” avaliou, em recente declaração concedida à Associação Nacional de Procuradores da República.

Mídia1508

A 1508 é um coletivo de jornalismo independente anticapitalista, dedicado a expor as injustiças sociais brasileiras e a noticiar as mobilizações populares no Brasil e no mundo.

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