A seletividade racista do sistema de justiça criminal começa antes mesmo da abordagem policial, se estende por todos os atos do que se chama de “política de segurança pública” e se faz presente em todas as etapas de um processo penal, inclusive quando os alvos dessa seletividade são arrolados como “vítimas” no teatro macabro do tribunal do júri. Os processos criminais são procedimentos que chancelam uma verdade produzida a partir da ação policial. Todo julgamento é político!
Entre os dias 22 e 26 de fevereiro de 2021, em meio a uma crise sanitário-securitária que já matou mais de 250 mil pessoas por Covid-19, ocorreu o julgamento de um policial militar e um guarda civil metropolitano de Barueri, acusados de participar da maior chacina da história do estado de São Paulo, que no dia 13 de agosto de 2015 ceifou a vida de 17 pessoas e deixou 7 feridas. O novo julgamento ocorreu após a anulação, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de metade das sentenças, em 2019. Esse novo júri, que absolveu os dois acusados, foi usado – numa inversão vergonhosa – para atacar politicamente todos os grupos de mães e familiares que, vítimas da violência do Estado, lutam por memória e verdade.
Com 122 páginas de prints de seu Facebook expostos no telão, Zilda Maria de Paula, que perdeu seu único filho na chacina de Osasco e se organiza no grupo de mães das vítimas da chacina de Osasco e Barueri, foi tratada durante seu depoimento como se a julgada fosse ela. Pessoas com quem passa o aniversário, sua relação com jornalistas e vínculo com outros movimentos de mães que lutam contra a violência do Estado foram colocadas em suspeição e usadas como mote de pedido de explicações demandadas a ela pelo advogado dos policiais, João Carlos Campanini. No mesmo ato, o advogado sugeriu ser criminalizável não só o trabalho da imprensa que cobre violência policial, como qualquer tipo de solidariedade e engajamento político organizado entre familiares vítimas da letalidade estatal, inclusive nomeado jornalistas, o que as expõe à outras violências.
Como se não bastasse, a defesa dos acusados usou um vídeo antigo e calunioso para atingir o Movimento Independente Mães de Maio. Nele, a ex-promotora Ana Maria Frigério Molinari afirma, sem mostrar qualquer tipo de prova, que grupos de Direitos Humanos seriam formados por mães de traficantes que, depois da morte de seus filhos em maio de 2006, teriam passado a gerenciar as chamadas “biqueiras”, ponto de comércio de substancias ilícitas, com o apoio do PCC.
Como integrantes de diversos setores da sociedade civil e pesquisadores da violência de Estado, repudiamos esse claro movimento de censura política e desqualificação dos movimentos de mães, parentes e amigos de alvos da violência policial e estatal. Também acreditamos que arrolar fatos posteriores ao julgado e fazer tentativas de assassinato de reputação e desqualificação moral de testemunha fere qualquer princípio de objetividade e justiça que um tribunal declare preservar. Por isso, declaramos toda nossa solidariedade ao grupo 13 de Agosto – Mães de Osasco e Barueri, às Mães de Maio e aos diversos movimentos espalhadas por todo o Brasil, o país que possui a polícia que mais mata e mais morre no planeta. Considerando que, no primeiro semestre de 2020, São Paulo registrou a polícia que mais matou em duas décadas.
Não nos cabe avaliar a decisão no tribunal, mas o argumento e a estratégia da defesa, que se mostraram decisivos, nos causa grande preocupação. Sabemos que desde a redemocratização (1985) não há mais os chamados crimes políticos e que, segundo a Constituição de 1988, se garante a liberdade de reunião, associação e manifestação pública e política. Mas é sabido, também, que as camadas populares, sobretudo as formadas pelas populações pretas e pobres, são controladas por meio de processos de criminalização pretensamente objetivos e neutros, ancorados no combate ao chamado “crime organizado”, ao comércio ilegal e ao trânsito de substâncias tornadas ilícitas.
Nesse autodeclarado “combate ao crime”, as relações e ligações com autoridades de todos os níveis e instâncias de poder são sempre cobertas por escaramuças e minimizadas como fatos isolados, mesmo sabendo que um ramo da economia informal, que movimenta tanto dinheiro e tantas armas, não poderia estar restrito aos habitantes de periferias e favelas e que seria impossível de se realizar sem a participação e/ou conivência de autoridades e membros da burocracia estatal em toda sua estrutura. Mas os perseguidos, condenados, presos e mortos são sempre os mesmos, das mesmas regiões da cidade, que compõem o perfil seletivamente produzido pelo sistema de justiça criminal como os sujeitos perigosos nas democracias. A defesa dos policiais acusados no júri de 22 a 26 de fevereiro de 2021 incluiu as mães dos executados e o Movimento Mães de Maio nesse rol de pessoas a serem perseguidas e passíveis de punição, mesmo que elas sejam vítimas na composição formal do processo criminal em debate no júri.
Diante de tudo isso perguntamos: está proibida a reunião e manifestação política de mães, parentes, familiares e amigos dos alvos da violência de Estado? Ao fazer dos registros dessas manifestações peça de inversão de acusação no tribunal, esse é o recado que se passa: não se manifeste, não se organize, mesmo que seu filho seja brutalmente executado, pois isso poderá ser usado contra você num tribunal.
O ataque à Zilda Maria de Paula e ao Movimentos Mães de Maio no Fórum de Osasco foi um ataque a todas as pessoas que prezam pela vida e pela liberdade. Por isso convocamos movimentos sociais, entidades, setores da sociedade civil, pesquisadores e estudiosos e todos os viventes dessa terra a prestarem solidariedade e apoio à luta dessas mães e repúdio às estratégias sórdidas de criminalização e desqualificação de movimentos sociais.
Se todo tribunal é político, estamos do lado das mães e dos alvos da violência de Estado. De qual lado você está?
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