“Lutar não é crime”: justiça inocenta ativistas contra Copa de 2014

Decisão confirma posicionamento sobre o caso do Supremo Tribunal Federal, que considerou ilegal a infiltração de policial em protestos e a apreensão sem mandado judicial de prova na casa de dois dos acusados.

Celebração pela absolvição dos 23 manifestantes criminalizados pelos protestos de 2013-2104 — Foto: Rafael Daguerre/M1508

Nesta terça-feira (19/3), a 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do anulou as condenações de 23 ativistas que participaram de manifestações contra a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Os atos denunciavam a repressão aos e a de milhares de famílias pobres que ocorreram à época, a pretexto de viabilizar a realização dos megaeventos (Copa e Olimpíadas) no país.

O julgamento ratifica os posicionamentos que já haviam sido tomado sobre o caso pelos ministros da segunda turma do STF (Supremo Tribunal Federal), que entenderam terem sido ilegais a atuação de um policial infiltrado nos protestos e a apreensão de um suposto artefato explosivo sem mandado judicial na casa de dois dos acusados.

“A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados”, afirmou a Corte, em julgamento realizado em 2021.

Rafael Caruso, um dos 23 manifestantes, destaca o caráter político das prisões e a importância da mobilização política para a absolvição.

“Tudo foi provado, de falsificação, de acusações, falta de provas. Forja. Tudo uma mentira. Um processo político na esteira das repressões do movimento de massa de 2013, e que no Rio de Janeiro continua até 2014″ relembra. “Foi uma luta e com muita mobilização política nesse tempo, lá na época e agora, a gente conseguiu fazer valer a justiça e a verdade, nesse judiciário que é tão avesso às causas populares”.

Também absolvida, a ativista Elisa Quadros Pinto Sanzi foi outra a comemorar a liberdade. Seu companheiro, Luiz Carlos Rendeiro Júnior, conhecido como ‘Game Over’, que também participava das manifestações, morreu em março do ano passado. Em 2013, uma foto do momento em que Elisa foi presa e estava sendo levada em um ônibus da Polícia gerou grande repercussão. Na imagem, o casal aparece se abraçando.

“Por 10 anos fomos perseguidos por este processo que tanto prejudicou nossa vida pessoal É com muita alegria que grito: Liberdade! Choro também por não poder abraçar meu amor que onde quer que ele esteja, está gritando e vibrando”, escreveu em suas redes sociais

Em 2018, em sentença controversa, o juiz Flavio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio, havia estipulado penas que variavam de 5 anos e 10 meses — para os que eram menores de idade na ocasião — a 7 anos de reclusão aos réus, pelo suposto cometimento de crimes como “associação criminosa armada” e “corrupção de menores”.

Na decisão, o magistrado fala na “conduta social reprovável” dos réus, marcada pelo “desrespeito aos Poderes constituídos” – que teriam sido desacatados por meio das ocupações Ocupa Câmara e Ocupa Cabral, em que manifestantes acamparam em frente à sede do Legislativo municipal e à casa do ex-governador do Rio Sérgio Cabral. “É inacreditável o então governador deste Estado e sua família terem ficado com o direito de ir e vir restringido”, escreveu o juiz.

Itabaiana também argumenta que os ativistas mereceriam penas maiores por serem de classe média. Segundo a decisão, eles teriam tido “oportunidades sociais que a esmagadora maioria dos réus nas ações penais não teve, não podendo sua pena, por conseguinte, ser a mesma que aquela de uma pessoa em situação idêntica, mas com poucas oportunidades sociais.”

Policial infiltrado

Em fevereiro de 2019, o STF já havia invalidado o depoimento do policial Maurício Alves da Silva, infiltrado em manifestações na época da Copa do Mundo de 2014, usado como prova na condenação dos ativistas.

Sargento da Polícia do Distrito Federal, ele fora lotado na Operação Pacificadora II, responsável pela implantação de uma UPP no morro Santo Amaro, no Catete, zona sul do Rio. Desde o dia em que pisou no Rio, afirmou, estava “atuando como observador” para coletar dados para atuação da Força Nacional no evento esportivo.

Um mês depois de chegar a cidade, o agente disse ter sido abordado enquanto filmava uma manifestação e “se viu obrigado” a dizer que cursava Gestão Pública em Brasília. Segundo ele, “foi utilizada essa história de cobertura para que as pessoas confiassem no declarante”. Trocou telefones e começou a cultivar amizades. Manteve, segundo relatos, relacionamentos com homens e mulheres ao longo enquanto esteve no Rio. Tudo com o propósito de recolher elementos que incriminassem manifestantes.

Segundo os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski, em decisão unânime, o processo de infiltrar Maurício nos grupos anti-Copa do Mundo não respeitou trâmites legais, como receber autorização judicial e ter acompanhamento da judiciário estadual. Assim, anularam todas as provas do processo que estejam ligadas à atuação do policial.

Relator do processo, Gilmar Mendes observou que o policial não precisava de autorização judicial para, nas ruas, colher dados destinados a orientar o plano de segurança para a Copa do Mundo. No entanto, no curso dessa atividade, infiltrou-se no grupo do qual supostamente fazia parte um dos condenados, a advogada Eloísa Samy, e, assim, procedeu a investigação criminal para a qual a Lei 12.850/2013 exige autorização judicial. “É evidente a clandestinidade da prova produzida”, afirmou.

“O referido policial, sem autorização judicial, ultrapassou os limites da atribuição que lhe foi dada e agiu como incontestável agente infiltrado”, avaliou Gilmar.

Segundo o relator, a infiltração ficou demonstrada ainda diante do ingresso do policial em grupo fechado de mensagens criptografadas criado pelos investigados para comunicação e de sua participação em reuniões do grupo com a finalidade de realizar a investigação.

“A partir do momento em que passou a obter a confiança de membros de um grupo específico e a obter elementos probatórios com relação a fatos criminosos concretos, o agente caracteriza-se como infiltrado, e isso pressupõe a autorização judicial que deveria ter sido requerida aos órgãos competentes”, completou.

Denúncia na ONU

Poucos dias após a condenação, diversas organizações da sociedade civil enviaram um comunicado à ONU denunciado a ação do judiciário brasileiro.

Em carta remetida ao relator especial sobre direito à liberdade de reunião e associação pacífica, Clément Voule, a Conectas, a Artigo 19, a Justiça Global e a Assessoria Jurídica Popular Criola apontaram que as acusações contra os manifestantes “uma tentativa de criminalizar o direito de protestar”.

Para a Justiça Global, os acontecimentos que se seguiram àquele ciclo de protestos provaram “o acerto das denúncias ecoadas nas ruas”:

“Os escândalos de desvio de dinheiro público, pagamento de propinas, conluio entre gestores públicos e empresas privadas, levaram o Rio de Janeiro à maior crise política e financeira de sua história” recordou a organização, em nota de repúdio publicada após a prisão dos ativistas.

“Lembrar hoje dos movimentos autônomos de de espaços públicos, como o Ocupa Câmara e o Ocupa Cabral, é necessariamente reconhecer a legitimidade e precisão das bandeiras que carregavam”, defendeu o documento.

As entidades solicitaram às Nações Unidas que emitissem uma declaração pública sobre o caso e que pressionassem o governo brasileiro para que a decisão fosse anulada.

No mesmo período, o próprio perito das Nações Unidas esteve no Brasil para reuniões com governo e sociedade civil:

“O Judiciário virou ferramenta usada por pessoas poderosas para reprimir quem não tem voz”, pontuou Voule, na ocasião.

Rafael Daguerre

Fotógrafo, Repórter, Editor e Documentarista

Um dos fundadores da Mídia1508. "Ficar de joelhos não é racional. É renunciar a ser livre. Mesmo os escravos por vocação devem ser obrigados a ser livres, quando as algemas forem quebradas" ― Carlos Marighella.

Ricardo Pitta

Redator e revisor.

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