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Dos limites do ensino remoto

A estimativa é de que menos de um terço do alunado está realizando as atividades, em determinados municípios do Rio.

Ato pela educação e contra o governo Bolsonaro em maio de 2019 / Foto: Rafael Daguerre - Mídia1508

Por Carina Blacutt

Nesta quinta-feira, dia 27 de agosto, foi publicado no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro a lei Nº 8991, que dispõe sobre a garantia da opção pelo ensino remoto, quando retomadas as aulas presenciais, até que seja disponibilizada a vacina para covid-19. O decreto determina que os estudantes poderão optar pelas aulas remotas, apresentando um documento com essa solicitação à sua unidade escolar. Também dispõe sobre a possibilidade dos educadores realizarem o ensino remoto.

O decreto em questão vem para fortalecer parte dos educadores, que são contra a retomada do ensino presencial, mediante o alto índice de professores com vulnerabilidades de saúde, enquadrados nos grupos de risco. No entanto, é preciso um olhar mais aprofundado sobre a situação atual do Estado do Rio de Janeiro para compreendermos a realidade da Educação.

Primeira ponderação a respeito da lei é que esta já pressupõe a retomada das aulas presenciais, ainda que não haja vacina. O que significa que a escola deverá oferecer um ambiente seguro para a realização das aulas, não possibilitando um ambiente de proliferação do vírus. Mesmo não sendo consenso a retomada das aulas presenciais somente após a distribuição da vacina, a realidade das escolas públicas do Rio de Janeiro está longe do que se pensa a respeito de segurança. Escolas precarizadas, sem banheiro, sem laboratório de informática, sem internet estável e de qualidade, sem verba para merenda que atenda a todos os estudantes, sem água, terá como atender em longo prazo todos os protocolos necessários? Parece ser bem improvável.

Segunda ponderação a ser feita é a respeito da prática do ensino remoto. O decreto aborda algumas das contradições da realização do feito até agora. Uma delas é a falta de sincronia entre o material didático impresso, disponibilizado pela Secretaria de Educação para alguns estudantes, e o conteúdo abordado pelo profissional de educação nas plataformas utilizadas para o ensino remoto. 

Essa determinação será positiva se significar que o professor terá sua liberdade de escolha do material didático e do conteúdo programático a ser aplicado. Do contrário, pode revelar-se como o início do fim da liberdade de cátedra do educador, que terá que rezar segundo a cartilha da Secretaria de Educação ou de sua instituição de ensino, realidade comum ao ensino privado. 

A terceira ponderação necessária diz respeito à democracia e ao ensino. No artigo de opinião publicado no dia 22 de agosto, pela Mídia 1508, Guilherme Santana pontua com excelência a questão do conflito escolar vivido no momento atual de pandemia, quando sinaliza o discurso dos representantes políticos que, defendendo o retorno das aulas presenciais, jogam responsáveis e alunos contra o corpo docente escolar. Tratando os efeitos do vírus com diversos eufemismos, os governantes por fim responsabilizam funcionários e professores pela ausência das aulas presenciais. 

Além disso, o encontra dificuldade na falta de acesso tanto do corpo docente quanto do corpo discente. É preciso perceber que o ensino remoto, da forma que está sendo realizado, é de longe uma solução perfeita para o impasse da Educação em tempos de e isolamento. Não devemos romantizar a lei publicada.

pela educação e contra o governo no Rio em 2019 / Foto: R. Daguerre – Mídia1508

O decreto responsabiliza o Estado pelo fornecimento de meios para o acesso ao ensino remoto. Entretanto, a realidade concreta já não é essa. Prometido enfaticamente pelo secretário de educação do Estado do Rio de Janeiro, os chips com acesso à internet não chegaram aos alunos, muito menos aos professores. A disponibilização de aparelhos eletrônicos foi sumariamente negada, justificada pela fragilidade das contas públicas estaduais. A estimativa é de que menos de um terço do alunado está realizando as atividades, em determinados municípios do Rio. O é viável para aquelas famílias mais favorecidas, aumentando assim a desigualdade socioeducacional. Mesmo que fosse possível fechar os olhos para a política educacional de desigualdade que representa o ensino remoto, sua própria aplicação em si apresenta contradições. 

A quarta ponderação aprofundada que precisamos fazer é o critério adotado para as escolhas das plataformas e sua aplicabilidade no ensino. Aqui no Estado do Rio de Janeiro foram selecionadas diversas plataformas, tanto privadas como públicas. Um exemplo é o da Secretaria de Educação do Município de Saquarema, que por meio do aplicativo WhatsApp, tem oferecido o com uma dinâmica que não está sendo bem-sucedida. Apesar do aplicativo ser bastante popularizado, a criação de grupos com os contatos dos alunos e dos professores, não está sendo eficiente da forma como está sendo utilizado. Sob moderação do educador, que abre o grupo da turma para postagens e acompanha as atividades realizadas pelos estudantes na apostila distribuída presencialmente na escola, fechando ao final do horário das aulas, este modelo está fracassando.

Tendo que cumprir o horário de aula online no grupo da turma, alunos e professores percebem a impossibilidade de reprodução direta da hora/aula presencial com a hora/aula do ensino remoto. No Ensino Fundamental I são constantes os relatos de mães que, se não abandonam, presenciam seus filhos chorando para a realização das tarefas. Isso acarreta a culpabilização dos educadores, que são vistos como insensíveis ou exigentes quanto à quantidade de conteúdo e atividades passadas. O sentimento é de que o controle de ponto do trabalhador foi atualizado.

Já a Secretaria de Educação, SEEDUC RJ, tem adotado a plataforma Google classroom, cobrando também a reprodução de hora/aula. Essa aplicação ignora a realidade dos educadores com filhos, por exemplo, que estão tendo que ministrar aulas e simultaneamente acompanhar as aulas deles, o que é praticamente inviável. Mesmo oferecendo facilidades, como a programação prévia das postagens com atividades e materiais didáticos, a plataforma, da forma que está sendo utilizada, não ameniza a sobrecarga do educador, muito menos dos estudantes.

Outro ponto que é importante ser ressaltado é essa tradicional parceria público-privada. A atual parceria da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro com a empresa Google acarreta a disponibilização de dados pessoais de toda comunidade escolar para uma empresa privada, que tem em seu histórico diversos casos problemáticos de vazamento de informações. Tal crítica pode ser feita também ao aplicativo WhatsApp, pertencente à empresa Facebook. Outra questão que não abordarei aqui, mas que não é menos importante, é a data de início de parceria entre Google e Secretaria de Educação, que em estudos levantados pelo Sindicato de Profissionais da Educação, o SEPE RJ, já tinha sido firmado antes mesmo do início da pandemia.

Uma instituição que parece estar atenta a esses problemas é a rede Faetec. Ao invés de recorrer a empresas privadas, a rede de ensino técnico adotou a plataforma da Fundação CECIERJ. O Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro é vinculado à Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação; e desenvolve, desde 2002, projetos nas áreas de graduação à distância, pré-vestibular social e extensão.

No entanto, os problemas do não se encerram só na escolha da plataforma pública. Um exemplo são as limitações da plataforma da Fundação CECIERJ, que com layout pouco intuitivo, exige dos professores uma organização maior nas postagens das atividades. Além disso, não oferece ferramentas para a realização de aulas ao vivo, tendo os professores que recorrer a outros aplicativos e plataformas para realização de aulas audiovisuais. Ao que parece, tampouco tiveram, os professores, cursos ou qualquer instrução para utilização da plataforma. Ademais, eventualmente a plataforma se encontra offline ou não carrega.

O que é possível concluir, com essa visão mais aprofundada da diversidade que está sendo realizada no Estado do Rio de Janeiro, é que o não pode ser visto como uma reprodução do ensino presencial. Não só na sua disponibilidade democrática, mas também na sua aplicabilidade. 

O ensino remoto, que está a léguas de distância do EAD tradicional, precisa ser reinventado. Obrigar o estudante e o professor a permanecer horas a fio diante de uma tela de celular ou de computador é tortura e está causando graves consequências psicológicas no corpo escolar. 

É preciso uma política de educação que abranja todos os educadores com cursos de atualização e novas práticas de ensino, como a gameficação, por exemplo, para tornar o ensino remoto eficiente. Do modo que está sendo aplicado, veremos futuramente uma escola adoecida, senão pela covid, por transtornos mentais.


Carina Blacutt é filósofa e professora da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, doutoranda em Estética e Filosofia da pela UERJ e colunista de educação da Mídia1508.

Mídia1508

A 1508 é um coletivo de jornalismo independente anticapitalista, dedicado a expor as injustiças sociais brasileiras e a noticiar as mobilizações populares no Brasil e no mundo.

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