Se você não protesta por medo de um golpe, então esse golpe já aconteceu

As manifestações ocorriam em plena ditadura militar, portanto, se hoje, segundo essas mesmas pessoas, não vivemos em um típico regime militar, por que não protestar?

Protesto antirracista em 2017 no Palácio Guanabara, no Rio — Foto: Rafael Daguerre/1508

Nas últimas semanas têm se discutido nos e nos espaços políticos da esquerda em geral, se devemos ou não ir para a rua protestar.

Com base no que estamos acompanhando pelo mundo essa resposta deveria ser fácil: há manifestações em dezenas de países contra o racismo, a e seus governos. Muitas mobilizações foram impulsionadas pelas revoltas que ocorreram – e ainda ocorrem – nos Estados Unidos (EUA) após o assassinato de George Floyd.

Mas parece que por aqui as pessoas não conseguem chegar a um acordo. Há duas questões que norteiam esse debate: a primeira, obviamente, é a pandemia em que vivemos atualmente e os riscos que isso pode nos causar; a outra, a meu ver, bastante equivocada, é de que não devemos protestar por receio de que aconteça um golpe. Existe o medo de que uma manifestação violenta crie uma espécie de “legitimidade” ao governo para um regime (ainda mais) autoritário. O que poderia ser retratado como uma “ditadura às claras” para aquele setor da população que ainda preza por algum tipo de “privilégio” e não conhece ou ignora a tirania aplicada nas favelas e periferias desse país.

Sem dúvida a pandemia é uma questão muito séria e falarei mais a seguir.

Antes, quero apresentar a constrangedora contradição daqueles que não querem manifestações por medo de um golpe. Vejamos: se você vive em um país que não se pode protestar por medo de um golpe militar, na verdade, você já está nele e não percebeu.

A insensatez desse tipo de posicionamento é o que rege a esquerda brasileira, que é sem dúvida uma das mais legalistas do mundo. Em um contexto crítico em que a extrema direita está no poder, grande parte da esquerda ainda sonha em acabar com o no pela legalidade. A esquerda “deixou de ser esquerda” e tornou-se “estúpida”, como afirmava Saramago no fim de sua vida.

Não podemos esquecer que mesmo nas ditaduras brasileiras ocorriam manifestações, violentas e não violentas.

Um exemplo entre tantos, o caso do jovem Edson Luís, assassinado por policiais militares que invadiram o restaurante Calabouço, no centro do Rio de Janeiro, no dia 28 de março de 1968, durante uma manifestação estudantil. Os estudantes conseguiram resgatar o corpo de Edson Luís e o carregaram em passeata pelo centro do Rio até as escadarias da Assembleia Legislativa, na Cinelândia, onde foi velado. No Rio de Janeiro, a cidade parou no dia do enterro. Para expressar seu protesto, os cinemas da Cinelândia amanheceram anunciando três filmes: “A noite dos Generais”, “À queima roupa” e “Coração de luto”. Com faixas, cartazes e palavras de ordem, a população protestava: “Bala mata fome?”, “Os velhos no poder, os jovens no caixão”, “Mataram um estudante. E se fosse seu filho?” e “PM = Pode Matar”.

As manifestações ocorriam em plena ditadura militar, portanto, se hoje, segundo essas mesmas pessoas, não vivemos em um típico regime militar, por que não protestar? Seja protesto violento ou não.

É evidente que estamos vivendo uma realidade de crescimento do no país e, segundo o filósofo e professor Vladimir Safatle, “estamos na direção de um golpe, de uma quebra institucional ou no mínimo de um Estado miliciano”. Safatle afirma que é uma questão de tempo seja qual for o caminho – através de métodos tradicionais, com o na rua, ou por caminhos “legais” de um sistema antidemocrático. Com isso, se torna ainda mais imprescindível nos organizarmos e protestarmos, e não o contrário.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro chefe da Secretaria de Governo afirmou em recente entrevista que “o próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”, declarou. Não é difícil traduzir o que ele deixou nas entrelinhas.

Ou seja, eles querem uma oposição mansa, domesticada. Portanto, o único argumento plausível do qual devemos discutir é, sem dúvida, a pandemia.

Pandemia no Brasil

A cada dia o Brasil bate um novo recorde macabro e vergonhoso, o de pessoas mortas pela Covid-19. A total negligência do governo se evidencia em sua maior preocupação com a economia do que pela vida e, sem dúvida, é o fator principal para estarmos com números alarmantes sem sequer chegarmos ao pico da pandemia no país. Hoje, ao que tudo indica, o Brasil é o epicentro da Covid-19. No final de maio os dados do portal Covid-19 Brasil, que reúne pesquisadores de diversas universidades brasileiras, já apresentava um número 11 vezes maior do que os casos divulgados pelo Ministério da Saúde e acima dos Estados Unidos, considerado oficialmente o epicentro da pandemia naquele momento, onde havia cerca de 1,5 milhão de casos confirmados, segundo a Universidade Johns Hopkins.

“O governo brasileiro perdeu a mão quanto ao controle da pandemia. O número de casos está crescendo de forma exponencial. Posso afirmar categoricamente que o Brasil se tornou o polo mais importante de disseminação do vírus covid-19 do mundo”, disse o professor Domingos Alves, um dos coordenadores da pesquisa, durante uma entrevista.

O país já possui mais de 46 mil mortes e é o segundo com mais óbitos pelo coronavírus. Importante frisar que estes são dados oficiais. A subnotificação no Brasil é de cerca de sete a onze vezes mais casos do que os números oficiais. Em nenhum momento o país teve lockdown, mesmo com números altíssimos de mais de mil mortes por dia. Pelo contrário, o que ocorre no momento é uma flexibilização do isolamento. E aqui nos cabe uma pergunta: é realmente possível superarmos a crise da pandemia com este governo?

Em um país com mais de 70 milhões de pobres e miseráveis não há como se manter em isolamento social se o governo não governar: quer dizer, se o governo não sustentar essas pessoas.

Para Safatle “existem duas crises nesse país, a crise da pandemia e a crise do Bolsonaro. E a primeira não pode ser debelado enquanto a segunda existir”.

No dia 7 de junho, ocorreram protestos antirracistas e antifascistas em diversas cidades brasileiras em meio à pandemia de Covid-19, contrariando um setor da esquerda brasileira que flutua entre os dois grupos citados acima – contrários aos protestos por medo de um possível golpe; contrários por causa da pandemia; ou ambos. No caso do Rio de Janeiro, a manifestação foi organizada por ativistas de de diversas favelas e sofreram acusações de irresponsabilidade por assumir a importância de um ato antirracista contra a violência policial. O cartaz de uma mulher preta em resume bem essa questão: “tenho medo da Covid-19. Mas luto contra o racismo e o genocídio”.

É importante e necessário que e grupos políticos de esquerda se organizem para realizar protestos, mas também se preparem – longe da legalidade burguesa – para o que está por vir. É indispensável estar nas ruas com manifestações de todas as formas possíveis contra esse governo, como pontua Safatle. O espaço virtual é importante e tem sua relevância como por exemplo difundir informação, mas protesto é na rua, seja ele como for. Manifestação virtual representa absolutamente nada para o poder.

“…é altura de protestar, porque se nos deixamos levar pelos poderes que nos governam e não fazemos nada por contestá-los, pode dizer-se que merecemos o que temos. […] Estamos a chegar ao fim de uma civilização e aproximam-se tempos de obscuridade, o pode regressar; já não há muito tempo para mudar o mundo”, José Saramago disse isso em 2007.

Obviamente que toda e qualquer mobilização deve ser realizada de forma segura, seguindo os protocolos da pandemia: máscara (ideal que proteja todo o rosto ou máscara e óculos), luvas descartáveis ou não, álcool gel e respeitando o distanciamento necessário. As pessoas que estão dentro da classificação de mais vulneráveis não devem sair.

Rafael Daguerre

Fotógrafo, Repórter, Editor e Documentarista

Um dos fundadores da Mídia1508. "Ficar de joelhos não é racional. É renunciar a ser livre. Mesmo os escravos por vocação devem ser obrigados a ser livres, quando as algemas forem quebradas" ― Carlos Marighella.

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