Por Camila Jourdan
Uma estátua é erigida para eternizar uma vitória, um sistema de valores, uma relação de forças. Ela é erguida para eternizar um instinto em uma instituição, até então duvidosa, a partir de então tomada como necessária, no sentido de não mais passível de modificação. Lá ela fica para tornar sólida, como a margem do rio, dentro da qual tudo mais se modifica, uma estrutura rígida, como um estado, um estado de coisas estático. A estátua não é jamais um símbolo de um indivíduo tão somente, pois ela ergue o indivíduo ao valor de não meramente individual, a estátua é sempre de um universal, um conceito, uma forma a partir da qual se lê os acontecimentos singulares.
Mas os acontecimentos singulares também podem destituir universais. Porque também faz tempo sabemos que a história não é um conjunto de fatos neutros a serem contados por um sujeito fora do tempo, a história é ela mesma composta por discursos, pelos jogos de força em movimento. Queimar símbolos de opressão é, antes de tudo, lembrar isso. Não é apagar uma história, mas fazer história, no sentido que é dar voz aos vencidos, àqueles que não viraram estátuas porque foram mortos, é reler o passado para recriar novos sentidos, trazer à superfície outras configurações, novas necessidades, e só assim se pode transformar verdadeiramente uma sociedade.
Se a linguagem fosse só composta por signos estruturados na dualidade bem-comportada de um sistema homogêneo dual língua-fala, queimar um significante não abalaria em nada um significado instituído. Mas se hoje as governanças correm para reformar o significante, e os discursos se apressam em criminalizar uma minoria de vândalos como ilegítimos é para suprimir o caráter necessariamente coletivo dessa enunciação, é porque de modo não dito reconhecem que a linguagem é ação, e por isso precisam tentar manter o lugar do universal como imortal inabalável, porque sabem que a linguagem é antes de tudo ação direta criação/destruição, e não mediação representante. Incendiar estátuas de escravocratas é uma voz coletiva que afirma que a escravidão é intolerável juntamente a tudo que ela estabelece enquanto sistema de valores, não é uma ato que ecoa para o passado, mas que se dirige ao presente, contra a escravidão que é continuada em nossos dias, nos trabalhos precarizado dos entregadores de aplicativos; no trabalho doméstico invisível das mulheres; na mais valia nossa de cada dia; em cada terra indígena devastada; em cada corpo trans violado; nos processos de destruição acelerada que correm hoje como se não houvesse, e por conta dos quais talvez não haja, amanhã. O modo de vida bandeirante segue bem vivo, e por isso ainda é preciso matá-lo em seu significado continuado.
Queimar estátuas é uma voz coletiva, de toda aquela vida tratada como resto aniquilável, revindicando em ato a destituição do que a mantém neste lugar, revindicando-se como um outro espaço de comunidade, como uma forma de vida com sentido imanente. É dar voz àqueles e àquelas sistematicamente silenciadas, prática profana que atenta contra o até então colocado como sagrado, o pano de fundo, sobre o qual tantas pessoas se tornam invisíveis. E, neste sentido, também prática ética-estética, pois, quando tantos morrem sem direito ao básico, poderes correm para socorrer estátuas mais rápido do que para comprar respiradores ou vacinas. E, neste contexto, vemos que a destituição simbólica atua em direção ao alargamento das fronteiras do mundo, em seus limites, por um pouco mais de possível, para a modificação de valores, tudo aquilo que só pode ser mostrado na linguagem e que, portanto, atua como imagem, como figura.
Se erguer estátuas tem sempre uma dimensão metafórica, porque ergue uma imagem que institui um universal, destruí-las não pode deixar de carregar um movimento poético de translação, pois consiste em retornar o significado para o âmbito do destrutível, queimável, deitado por terra, novamente como mais um na batalha. Trata-se de dizer que a guerra ainda não foi vencida, porque ainda estamos em campo, porque ainda tem jogo para ser jogado.
Para além de retornar para o concreto o que havia sido investido de poderes abstratos, ou precisamente por isso, o churrasco de Borba Gato no lembra os versos da velha canção revolucionária: aqueles que mandam matar também podem morrer. E trata-se não apenas de uma morte individual, obviamente, mas da morte de seus poderes perpetuados por gerações. À velha estátua carcomida, inventar novos usos, novas simbologias!
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Camila Jourdan é professora de filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), militante anarquista e educadora popular no coletivo Ação Direta Em Educação Popular (ADEP).
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