Os militares estão saindo ou entrando no Governo? Querem te confundir!

O Ministro da Defesa abdicou do cargo por não apoiar Estado de Sítio e outros chefes do generalato foram juntos. Quem ganhou foi a cúpula que veio do Haiti.

Jair Bolsonaro (sem partido) durante evento do Exército em 2019 / Fernando Souza/AFP

Por Guilherme Giuliano Nicolau

No dia 29 de março de 2021, muitos foram demitidos e renunciaram o governo Bolsonaro. Parece instabilidade, e é. O Ministro da Defesa abdicou do cargo por não apoiar Estado de Sítio e outros chefes do generalato foram juntos. Quem ganhou foi a cúpula que veio do Haiti, que rachada com os moderados que abandonaram o barco, assume mais funções civis e possuem a popularidade da massa do baixo escalão do Exército (de maior contingente e mais popular), vistos como heróis e exemplos que vieram do Haiti. Braga Netto assumiu o Ministério da Defesa, depois de ter sido Ministro da Casa Civil e antes ter sido Chefe do Estado Maior; General Ramos assumiu a Casa Civil e um delegado amigo da família Bolsonaro assumiu o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Pressupõe-se que, no governo de Bolsonaro, avance cada vez mais uma parcela ativista dos novos heróis militares que vieram do Comando Militar do Leste e da MINUSTAH […]. Quando as capas de jornais estampam os militares e conhecemos os nomes de cada um, quando os militares fazem comunicados públicos igualando à Lei e à Ordem, é porquê algo de errado não está certo.

Virginia Fontes nos define a ‘pobretologia’ que surgiu nos anos 1960. Diante do fracasso estadunidense na Guerra do Vietnã, McNamara toma uma decisão: não é possível ocupar um país, se não ocupamos as instituições e o gerenciamento da pobreza. Assim, você concatena apoio a governos militares junto a programas de desenvolvimento e de programas sociais, junto às instituições financeiras (Banco Mundial, FMI) ou com as organizações internacionais (GATT, OIT etc). Essa era a melhor forma de combater os levantes na periferia do mundo, incentivados pela URSS. Junto a isso, você incentiva os órgãos judiciários desses países, que ainda são patrimonialistas (ou seja, a relação entre Estado, família e negócios é indistinto, feudal), a desvelar e combater a ‘corrupção’ nesses países republicanos em que o lobby é ilegal, principalmente quando há ameaça de um governo de esquerda – que assim como todos, utiliza da mesma estrutura política e econômica que a direita. Foi assim, por exemplo, a Operação Mãos Limpas na Itália, o duplo da Operação Gladio na Europa que levou a golpes militares na Grécia e na Turquia. Ou foi assim também as operações contra a suposta corrupção de Jango ou Perón, uma ‘ameaça comunista’, e a Operação Condor apoiando os golpes militares na América Latina entre os anos 1960-1980.

Uma vez que a União Soviética cai após investidas agressivas na Polônia (com Walesa e João Paulo II), explodem as guerras civis pelo mundo, os EUA – e a OTAN – assumem o protagonismo nas operações de estabilização política nesses países, agora com legitimidade internacional já que o Conselho de Segurança da ONU passa a se movimentar. É quando se universaliza a atuação da ‘pobretologia’ e começam as Operações de Paz e Justiça para Estados Falidos, como conhecemos na Iugoslávia, em Ruanda, no Congo, nas Filipinas e, principalmente, conhecemos no Haiti. Tentou-se também no e no Iraque, mas uma vez que não conseguiu unidade entre europeus, os EUA tomou suas medidas unilaterais na Doutrina Bush que, assim como no Vietnã, demonstrou-se um fracasso na mesma medida já que, uma vez ganha a guerra, ocupar foi a tarefa mais árdua já que só armas não dá pão.

A partir daí começou a se falar de Segurança Humana. Segurança Humana seria um tipo segurança abrangente, não é apenas estratégica e militar. É segurança alimentar, nuclear, ambiental e de todo o tipo.

Houve muitos intelectuais bem intencionados a formular o conceito de segurança humana, como Amartya Sen. Mas não demorou muito para a OTAN alinhar a agenda de Guerra ao Terror ao conceito de Segurança Humana. Assim, onde havia miséria havia perigo do terrorismo crescer, o que exigia intervenções com Missões de Paz e Justiça. O grande fracasso dessas missões ficou clara com a instabilidade gerada no mediterrâneo que explodiu na Primavera Árabe e que terminou com apenas um governo democrático instável e uma guerra eterna na Síria, a enorme quantidade de que se espalha pelo mundo.

No Novo Mundo também houve ação. A agenda de Guerra às Drogas se juntou à agenda da Guerra ao Terror, chamado agora narcoterrorismo. Junto à guerra ao narcoterrorismo que militarizou a Colômbia e fez explodir a população carcerária no continente (principalmente no Brasil), também começaram as operações contra a corrupção e os golpes jurídicos contra governos na América Latina, geralmente com jovens juristas de primeira instância formados em cursos nos EUA tendo como base a Operação Mãos Limpas da Itália (origem da Operação Lava Jato).

No Haiti, enquanto o Presidente era o Aristide, um franciscano da Teologia da Libertação, os EUA investiu fortemente para derrubar o governo. Investiu na criação de forças paramilitares ligadas ao narcotráfico para desestabilizar o governo de Aristide, tentou invadir e derrubá-lo algumas vezes, acusou de corrupção e envolvimento com o tráfico de drogas, justificou intervenções. O Haiti entrou em guerra civil, Aristide teve que fugir do país e foi os EUA quem assumiu a primeira Operação de Paz da ONU no Haiti. Diante do enorme fracasso da operação, o agravamento da guerra civil, a desconfiança da população diante da norte-americana, a comunidade internacional clamou por um substituto.

Foi o Brasil de Lula que assumiu a Operação de Paz no Haiti, já que a identidade internacional do País era vista com simpatia tanto pela comunidade internacional como pelo Haiti. E Lula buscava aproveitar o ciclo de expansão comercial antes da crise de 2008 para aproximar o Brasil das responsabilidades sobre o mundo. Assumiu a Operação no Haiti, onde cresceu nomes como Braga Netto, Hamilton Mourão, General Heleno, General Ramos, Santos Cruz, Edson Pujol, Villas Bôas, Fernando Azevedo e Silva – todos esses que compõem ou compuseram o governo Bolsonaro, que passaram pela MINUSTAH e pelo Comando Militar do Leste. A Operação foi mais ou menos sucedida para a comunidade internacional, mas cada vez aparecem mais escândalos de atrocidades que as forças armadas fizeram no Haiti, desde rede de estupros e tortura. O Comando brasileiro ficou responsável por trazer estabilidade no País, garantir as suas instituições sociais e coordenar o processo para uma eleição democrática. Porém, havia uma ordem: o partido de Aristide, que possuía aprovação de mais de 60% da população, não poderia se candidatar. Assim fizeram, por mais que diversos intelectuais do mundo questionaram a atuação da Missão da ONU do Haiti contra a vontade popular.

Exército brasileiro atua na repressão contra o povo haitiano em 2007 / Foto: Reprodução

O governo brasileiro foi cúmplice do mesmo esquema que depois aconteceria em seu próprio País. Aconteceu em tempo curto no Haiti, Honduras, Paraguai, Brasil, Bolívia, Peru, tentou-se no Equador, na Argentina, Nicarágua e na Venezuela. Simultaneamente, como já havia sido comum na Operação Gladio na Turquia, os EUA incentivou a criação de grupos de extrema-direita negacionistas e conspiracionistas bastante ‘baderneiros’ (como os ‘camisas negras’ de Mussolini) para trazer cada vez mais instabilidade que justificasse governos ‘linha-dura’ para colocar ordem.

No caso da Turquia e do Brasil, quem coloca ordem ao tumulto dos negacionistas a lá Bannon e Bolsonaro são as Forças Armadas e sua tradição positivista de enfrentar a anomia de forma cirúrgica como se fosse um câncer. Não foi incomum nos golpes que aconteceram na Turquia, mesmo nos anos 1990, terem uma convulsão social incitada por milícias de extrema-direita como os ‘Lobos Cinzentos’ para justificar a abolição dos partidos, a perseguição à esquerda e aos movimentos revolucionários comunistas e curdos. A oposição entre Bolsonaro e as Forças Armadas é uma falsa oposição, um golpe midiático como um Plano Cohen. A instabilidade que Bolsonaro gera, abre espaço para os militares tomarem o governo civil em um golpe lento, gradual e seguro, de forma que nem nos damos conta e não precisa tomar de assalto.

A cúpula que saiu do Haiti (Netto, Mourão, Heleno) veio para o Brasil coordenar as UPPs. As UPPs faziam parte de um programa do Governo Lula chamado PRONASCI (hoje SUSP), que tinha como objetivo aplicar o conceito de Segurança Humana para o País. Tarso Genro dizia que não se podia chegar nas favelas apenas com as armas, mas precisava levar também a gestão da miséria, organizando todos os setores da sociedade junto à segurança pública. Mais, precisa ser uma ação integrada entre as polícias, modernizada pelo sistema informacional, de forma que vá de Brasília até o policiamento comunitário em um bairro nos rincões do País e o CONSEG da sua região. Em São Paulo não foram as UPPs, foram as ‘Operações Sufocos’ que começaram com Kassab na periferia, foi para a região da Luz e continuam a existir diariamente independente do prefeito, que agora possui uma GCM aparelhada e armada. Crescente segurança das diversas esferas da vida social, a exceção que hoje é regra no mundo todo. As reformas feitas para a Copa do Mundo e Olimpíadas (com atuação de Santos Cruz) aceleraram o processo, com uma nova Lei de Terrorismo e repressão aos contestatórios que foram estimulados por agências como Ford Foundation e Open Society Foundation – contestações dignas em momentos complicados.

General Augusto Heleno e o exército brasileiro reprimem protesto da população no Haiti em 29 de março de 2005 / Foto: Daniel Morel/Reuters

Veio a Lava-Jato, veio o golpe, veio o entreguismo dos royalties do Pré-Sal pelo Senado, coordenado pelo José Serra junto com a CIA (não é teoria da conspiração, disso se sabe por documentos oficiais vazados pelo Wikileaks). O desmonte caminha, o negacionismo é incentivado e a instabilidade é gerada. O governo volta com o Gabinete de Segurança Institucional da época da ditadura, subordina a ABIN ao Gabinete e aproxima o Gabinete da Presidência da República, comandado por ninguém menos que um herdeiro da ditadura como Etchegoyen (hoje general Heleno). A ABIN já possuía um engendrado sistema de dados de monitoramento georreferenciado dos no Brasil que continuam a ser atacados (ex: Preta Ferreira). A situação nos presídios do Nordeste saem do controle, reformas de segurança acontecem, o PCC – o comando mais imbricado com o poder público brasileiro hoje – avança para o Rio de Janeiro, as milícias avançam junto com os evangélicos, também imbricada com a sua bancada no Congresso As operações nas favelas tornam-se mais intensas e fora de controle, até a Globo perde a paciência com a ‘falta de ordem’, pedindo a pomba da paz em suas novelas ou no Jornal Nacional de Ali Kamel.

Veio Bolsonaro, apoiado por toda a rede internacional negacionista, um tanto fascista. A mesma rede de Bannon que está com Aurora Dourada na Grécia, com Salvini na Itália, com Orban na Romênia, com Trump nos EUA, AfD na Alemanha, Vox na Espanha, André Ventura em Portugal etc. Tudo expandido através das redes sociais, com as novas ferramentas de análise de dados que veio à proeminência com a Cambridge Analytica.

Bolsonaro colocou a sua família no poder para gerenciar o ‘gabinete do ódio’, à moda de Bannon, fazendo de tudo possível para gerar o máximo de caoa e instabilidade (posições das quais, ele provavelmente acredita). De outro lado, junto ao seu vice Mourão, colocou a nova cúpula de estrelas das forças armadas vindas do prestígio do Haiti e das UPPs, todas operações mais ou menos fracassadas que se forçava a popularidade junto à mídia (que em um segundo momento passou a criticar, mas ainda possui apoio popular). Todos os segundos cargos de todos os ministérios assumiu um militar. Aqueles ministros que são demitidos após onda de instabilidade gerada pela sua ignorância, são substituídos imediatamente por ministros, agora, militares. Moro assumiu o Judiciário, reformou o sistema de justiça e a própria Lei de Terrorismo de forma que a citação sobre na lei se tornou mais ambígua que antes.

Quando explodiu a pandemia, a opção de Bolsonaro sempre foi o negacionismo e a geração da maior instabilidade possível. Confrontou os poderes federativos e fez de tudo para caminhar para uma situação que exija Estado de Sítio, situação da qual ele  seria Chefe do Poder Executivo a comandar, a disputar ou dividir com a nova cúpula militar.
São nesses espaços de desgoverno gerados pelo Presidente que avança a nova cúpula das Forças Armadas. É uma falsa oposição, um aproxima o negacionismo para abrir as porteiras aos detentores da Ordem, as forças armadas e sua ‘missão histórica’ de garantir a estabilidade. Quando Mandetta e Moro renunciaram, assumiu a Casa Civil o General Braga Netto, para ‘pôr ordem na casa’.

Muito poder foi acumulado na mão do Braga Netto (e a instituição militar). Ele era simultaneamente o ‘Presidente das Forças Armadas’ e o ‘Primeiro-Ministro’, vamos dizer assim, de forma vulgar. Poucos indivíduos, em poucos momentos na História, tiveram acumulado tamanho poder Executivo. Braga Netto era Chefe do Estado-Maior e Chefe da Casa Civil, simultaneamente. Na Política, exerce-se sempre o poder que se têm, executa-se sempre tudo o que se é capaz – não existe ‘boa vontade’, existe balança de poder. Se essa fraternidade que veio do Haiti é silenciosa e parece razoável comparada ao Presidente Bolsonaro, não é por acaso. Não foi por acaso o momento que escolheram para isso acontecer já que era aniversário do Golpe Militar de 1964 e tomou outras proporções o comunicado regular que as Forças Armadas emitem todo o ano esclarecendo a ‘missão histórica’ que cumpriram para garantir a Ordem e o Progresso (para quem?). Assim fizeram novamente esse ano, já tendo todo um simbolismo do espetáculo.

Bolsonaro continua trazendo instabilidade e lidando com a pandemia de forma genocida. Uma postura chula que acredita que a doença possa eliminar todos os indesejados e improdutivos, os pobres, os que moram nas ruas em péssimas condições sanitárias (principalmente negros), os que estão nos presídios, albergues e abrigos; os velhos e os deficientes, as crianças que vivem na marginalidade. Mais, enquanto gera a instabilidade que corrói a economia do país e nos leva a tempos medievais, ainda gera mais instabilidade, aproxima a justificativa de um Estado de Sítio e coloca mais militares da cúpula em um governo civil. Não precisa ser evidente o golpe se ele já acontece por dentro, um ‘golpe branco’.

Hoje, 29 de março de 2021, muitos foram demitidos e renunciaram o governo Bolsonaro. Parece instabilidade, e é. O Ministro da Defesa abdicou do cargo por não apoiar Estado de Sítio e outros chefes do generalato foram juntos. Quem ganhou foi a cúpula que veio do Haiti, que rachada com os moderados que abandonaram o barco, assume mais funções civis e possuem a popularidade da massa do baixo escalão do Exército (de maior contingente e mais popular), vistos como heróis e exemplos que vieram do Haiti. Braga Netto assumiu o Ministério da Defesa, além de já ser Chefe do Estado Maior; General Ramos assumiu a Casa Civil e um delegado amigo da família Bolsonaro assumiu o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Pressupõe-se que Bolsonaro, assim como fez Dilma de forma mais branda, aposente diversos generais que não são simpáticos sequer a ele ou a parcela ativista residual dos novos heróis militares do Comando Militar do Leste, para trazer mais dois nomes próximos a assumir as forças armadas depois das demissões: Freire Gomes e José Luiz Freitas. Ou, ao fim, prevalecerá concessões com nomeações tradicionalistas igualmente antidemocráticas.

Do positivismo militar da primeira República ao behaviorismo tecnocrático da Escola Superior de Guerra durante a ditadura militar, avança dentro das Forças Armadas uma nova elite populista do Exército. Assim caminham, de forma lenta, gradual e segura, sem precisar de um golpe de assalto. Quando as capas de jornais estampam os militares e conhecemos os nomes de cada um, quando os militares fazem comunicados públicos igualando à Lei e à Ordem, é porquê algo de errado não está certo.

Quando as capas de jornais estampam os militares e conhecemos os nomes de cada um, quando os militares fazem comunicados públicos igualando à Lei e à Ordem, é porquê algo de errado não está certo.

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Guilherme Giuliano Nicolau é PhD em Ciência Política pela USP; estudou a Doutrina de Segurança para a Europa no Mestrado e no doutorado estudou a relação do PRONASCI para as políticas de segurança pública à população de rua em São Paulo.

Mídia1508

A 1508 é um coletivo de jornalismo independente anticapitalista, dedicado a expor as injustiças sociais brasileiras e a noticiar as mobilizações populares no Brasil e no mundo.

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