Invenção do inimigo interno e repressão na Argentina

Às vésperas da realização do encontro do G20 na Argentina, detenções de ativistas e membros de minoria religiosa revelam a velha estratégia de legitimação de medidas repressivas ilimitadas: a invenção do “inimigo interno”. Não se bastando da sanguinária e sistemática perseguição policial, judicial e midiática aos mapuches, o enredo repressivo argentino se abastece de anarquistas e de muçulmanos.

Dois grupos sem qualquer relação política, mas que, assim como os mapuches, partilham o fato de serem apresentados pela mídia como ameaças a determinados projetos civilizacionais. No Brasil, em 2014 e 2016, enredos paranoicos semelhantes sobre black blocs e muçulmanos favoreceram a aprovação da chamada Lei Anti-terrorismo: um instrumento do Terror de Estado contra todas as formas de ativismo social e uma severa ameaça aos movimentos populares.

No dia 14 de novembro, o governo argentino anunciou a prisão de 14 ativistas sociais identificados como anarquistas, apresentados pela mídia como “perigosos terroristas” e acusados de terem relação com ações pontuais em que artefatos explosivos caseiros foram utilizados. A evidência policial da relação “orgânica” entre os ativistas é a de que alguns viveriam na mesma moradia e todos seriam anarquistas.

Armados e uniformizados para uma operação de guerra, os agentes da repressão invadiram uma popular, a sede do “Ateneu Anarquista” (que conta com uma importante biblioteca de acervo libertário) e um centro cultural-comunitário onde eram oferecidas aulas de artes marciais para a população. O Estado justificou a operação como uma enérgica resposta a alguns episódios que foram, na realidade, pontuais e de caráter simbólico.

Um dos atos foi uma tentativa de explodir o túmulo de Ramón L. Falcón, um militar que ficou na história por ordenar a execução de 11 trabalhadores, em represália ás manifestações do de 1909. Justiçado por um trabalhador anarquista em 14 de novembro daquele mesmo ano, seu túmulo frequentemente é alvo de depredações na data em que se comemora sua morte. O ato falhou, resultando na amputação de três dedos de uma ativista e na detenção de outros dois.

A outra ação, ocorrida na mesma noite, tratou-se de um pacote suspeito arremessado na frente da casa do juiz Claudio Bonadio e detonado pela na seqüência. Um suspeito foi preso nos arredores e é considerado pela polícia um ativista de “grupos anarquistas”. Os investigadores suspeitam que o juiz foi alvo da ação por ter processado a ex-presidente Cristina Kirchner, acusada de corrupção – suspeita que não soa coerente com a alegada autoria “anarquista”.

No dia seguinte, outra operação policial espalhafatosa invadiu uma residência e prendeu dois jovens muçulmanos, irmãos de origem libanesa, suspeitos de apoiarem o Hezbollah – grupo político à frente das mobilizações de contra a sionista. Na residência, a apreendeu algumas poucas armas antigas, todas registradas, herdadas do bisavô que fazia parte de clubes de caça. Mas a mídia tem veiculado a apreensão de um “arsenal de guerra”.

Os rapazes foram apontados pela “Delegación de Asociaciones Israelitas Argentinas” (DAIA), que por sua vez teria recebido uma denúncia anônima. Entretanto, poucos dias depois veículos argentinos e israelenses revelaram que a própria Mossad ( secreta israelense) colaborou com a interceptação dos suspeitos. Para os investigadores, as evidências de vínculos com o Hezbollah seriam viagens ao exterior e o apoio declarado à causa da Palestina.

O pai dos acusados explicou para a imprensa as razões das viagens: foram algumas vezes visitar os familiares no Líbano, o mais novo foi ao Irã fazer um curso de religião por dois meses e ambos estiveram na Síria, em 2009, junto a parentes para visitar um santuário do neto do Profeta Muhammad.

Em declaração oficial, os irmãos negaram contundentemente o apoio a qualquer tipo de terrorismo. Contudo, frisaram que o Hezbollah é um partido político legalmente reconhecido no Líbano, contando com aproximadamente 150 mil membros e apoiado por um sem número de simpatizantes da libertação palestina.

Os irmãos são parte de uma família de muçulmanos argentinos, embora a origem libanesa, gerando consternação e declarações de solidariedade tanto na comunidade árabe quanto na islâmica. A Argentina é um dos países latino-americanos com uma das maiores proporções de muçulmanos do continente, com presença consistente desde o século XIX. Buenos Aires conta com, pelo menos, três mesquitas. Além das famílias de origem árabe estabelecidas há gerações no país e de recentes, a Argentina abriga um número relevante de muçulmanos convertidos, tanto do ramo sunita quanto do xiita, incluindo ordens sufis.

A “Federación de Entidades Islámicas de la República Argentina” (FEIRA) apontam que o enredo criminalizador é inconsistente e que as investigações não apontam para nenhuma evidência concreta que indique as conexões dos irmãos com o Hezbollah. A “Asociación Árabe Argentina Islâmica” (AAAI) e a “Confederación de Entidades Argentino Árabes” (Fearab) repudiaram a operação e ressaltaram que os descendentes de árabes fazem parte do tecido social argentino, ressaltaram que a comunidade muçulmana é vítima de perseguição e que as entidades
apresentarão uma denúncia contra o Estado.

Uilton Oliveira

"Bem próximo estamos do dia em que os governantes de todo o mundo tenha de pautar o seu modo de agir, de acordo com as resoluções dos trabalhadores organizados" ― Domingos Passos.

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