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O Stonewall Brasileiro

Protestos nos anos 80 marcam o início do movimento contra a LGBTfobia no país.

Junho é o mês em que se celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBT+, em homenagem aos protestos que ficaram conhecidos como a “Rebelião de Stonewall”. Em 28 de junho de 1969, os frequentadores do bar Stonewall Inn, reduto da comunidade gay em Nova York, se revoltaram contra as constantes batidas policiais no local — resultando em uma batalha que durou duas noites. Stonewall se tornou o marco mais representativo da luta contra a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, servindo como referência para outras manifestações ao redor do mundo.

No Brasil, dois episódios semelhantes (e bem menos lembrados) tiveram lugar na do início dos anos 80: a passeata contra o delegado Richetti e o Levante do Ferro’s Bar – primeiros atos de rua a encampar esse tipo de pauta no país, em plena ditadura militar.

Desde abril de 1980, estavam se tornando cada vez mais frequentes o encarceramento, o espancamento e a tortura de pessoas LGBT+ na região central da capital paulista. A repressão invadia bares, cinemas e saunas, levando todos que ali estivessem. A violência sexual e a extorsão eram também rotina nessas “rondas”, que eram comandadas pelo delegado da Civil José Wilson Richetti.

Richetti era um veterano do higienismo social paulistano. Em 1968, quando da visita da Rainha Elizabeth II, coordenara uma ofensiva policial cujo objetivo era, como ele mesmo declarou à imprensa na ocasião, “limpar a cidade dos assaltantes, prostitutas, traficantes, homossexuais e desocupados”. Em sua visão reacionária, não eram seres humanos, mas sim uma “sujeira” a ser varrida das ruas.

Apesar de ter como alvo principal as travestis, suas operações miravam qualquer um que fugisse dos padrões defendidos pelo regime, chegando a prender 1.500 pessoas em uma única semana. Utilizava-se da Lei da Vadiagem, que exigia identificação e carteira de trabalho assinada. Isso numa capital com mais de 1 milhão de desempregados já no final dos anos 70.

Longe de serem medidas isoladas, tais ações eram abertamente defendidas pelos altos escalões da época. Nas palavras do então governador Paulo Maluf, os ataques de Richetti correspondiam a uma “guerra sem quartel”. Em 1º de abril de 1980, por exemplo, o Estado de publicou uma matéria intitulada “ já tem plano conjunto contra travestis”. A “proposta” era “tirar os travestis das ruas de bairros estritamente residenciais; reforçar a Delegacia de Vadiagem do DEIC para aplicar o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais; destinar um prédio para recolher somente homossexuais; e abrir uma parte da cidade para fixá-los são alguns pontos do plano elaborado para combater de imediato os travestis (sic), em São Paulo”.

Organização e luta nas ruas

Nem mesmo a ditadura, no entanto, conseguiu impedir que a onda de Stonewall chegasse ao Brasil. Na virada da década de 70 para 80, já estava em curso todo um processo organizatório do então chamado movimento homossexual em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

É nesse contexto que surgem publicações da imprensa alternativa como o jornal Lampião da Esquina em 1978. Escrito por gays e com linha editorial francamente contrária ao governo militar, esses veículos são hoje uma rica fonte histórica a respeito do período. Pelas paginas do Lampião podemos conhecer, por exemplo, iniciativas como o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), ou ainda o SOMOS, primeiras organizações brasileiras voltadas à defesa dos direitos dos homossexuais.

No dia 13 de junho, doze coletivos protestam contra as ações da na frente do Teatro Municipal: Somos: afirmação homossexual, Movimento Negro Unificado (MNU), Ação Lésbica Feminista, Núcleo de Defesa da Prostituição, Associação de Mulheres, Grupo Feminino 8 de Março, Convergência Socialista, Departamento Feminino USP – DCE-Livre, Grupo Eros, Ação Homossexualista e Nós entoavam gritos como “Amor, feijão, abaixo ao camburão”, “Libertem as travestis” e “Somos todas putas”, enquanto marchavam até o Largo Do Arouche

A mobilização foi pequena se comparada às gigantescas paradas atuais. Mas foi suficiente para fazer com que o secretário de segurança, o desembargador Otávio Gonzaga Junior, e Richetti tivessem de ir de depor na Comissão de da ALESP.

O delegado protegido de Maluf continuaria a perseguir a comunidade LGBT+. Foi sob as suas ordens, que, na noite de 15 de novembro de 1980, a PM-SP promoveu a infame “Operação Sapatão”. Esta consistiu na ida de um grande efetivo de agentes até os bares da rua Martinho Prado com uma única missão: prender o maior número possível de lésbicas.

Cerca de 200 mulheres, lésbicas ou não, foram levadas para uma cela e tiveram que pagar para serem liberadas, mesmo que não tivessem praticado nenhum crime. De acordo com uma das presas, a ameaça de uma segunda perseguição era clara: “Ninguém foi fichado, mas a ficou com os nomes e os números de todas”.

O Levante do Ferro’s Bar

A mesma região voltaria a ser palco de conflitos relacionados à três anos depois. Em 23 de julho de 1983, o dono do Ferro’s Bar, na Martinho Prado, mandou expulsar as integrantes do GALF, alegando que elas estariam importunando a clientela com a venda do seu boletim, o ChanaComChana. O porteiro agiu com truculência, o que gerou indignação e ajudou a mobilizar uma frente de ação contrária à proibição da entrada das ativistas no estabelecimento.

Então, no dia 19 de agosto daquele ano, as militantes do GALF, unidas a outros grupos ativistas feministas, gays e defensores de direitos humanos, realizaram uma do bar contra a opressão e pelo fim às expulsões arbitrárias. A quarta edição do ChanaComChana apresenta um relato de como foi o evento:

“Cercado por jornalistas, lésbicas não-militantes ou do GALF e pela vereadora Irede, o dono foi obrigado a discutir suas atitudes e as militantes do GALF conversaram com o dono e conseguiram com que ele declarasse perante imprensa que o grupo poderia divulgar seu boletim dentro do bar.”

Por conta do levante – e em memória de Rosely Roth, pioneira e articuladora da causa lésbica no Brasil – o 19 de agosto se tornou o Dia Nacional do Orgulho Lésbico.

Ricardo Pitta

Redator e revisor.

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