Quando os militares latino-americanos começaram a utilizar a prática de desaparecimentos forçados como método repressivo, acreditaram ter descoberto o crime perfeito: dentro de sua lógica desumana, não há vítimas, portanto, não há perpetradores, nem crime.
A prática de desaparecimentos forçados surgiu na América Latina na década de 1960. Com alguns precedentes muito anteriores — como o desaparecimento de cadáveres em El Salvador em 1932, após os massacres realizados pelo regime de Hernández Martínez —, o próprio método começou a tomar forma na Guatemala entre 1963 e 1966.
Desde o início, os desaparecimentos forçados mostraram os sinais do que, ao longo dos anos, se tornou um dos principais métodos de controle político e social: impunidade e violação absoluta das leis mais básicas de direitos humanos.
Produto de uma política continental de dominação, os desaparecimentos não são uma característica exclusiva das ditaduras militares. Países como México, Colômbia e Peru, com governos civis eleitos, são ou foram cenários dessa prática.
O dia 30 de agosto marca o Dia Internacional dos Desaparecimentos Forçados, e a América Latina se destaca, como todos os anos, pelo número alarmante de pessoas desaparecidas, um número que continua crescendo.
A América Latina inclui seis dos 10 países com maior número de desaparecimentos forçados entre 1980 e 2020, de acordo com o Relatório do Grupo de Trabalho das Nações Unidas (ONU) sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários.
Argentina, Guatemala, Peru, El Salvador, Colômbia e Chile, juntamente com Iraque, Sri Lanka, Argélia e Paquistão, estão entre os países com o maior número de desaparecimentos forçados nos últimos 40 anos.
A ONU se refere ao desaparecimento forçado como “a prisão, detenção, sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, seguida de uma recusa em reconhecer a privação de liberdade ou ocultação do destino ou paradeiro da pessoa desaparecida, que a remova da proteção da lei”.
Na América Latina, a maioria dos desaparecimentos forçados ocorreu durante ditaduras militares, embora no Peru e no México os números também tenham sido significativos durante períodos democráticos. A Anistia Internacional estima que, entre 1966 e 1986, mais de 90.000 desaparecimentos forçados ocorreram no México, El Salvador, Chile, Uruguai, Argentina, Brasil, Colômbia, Peru, Honduras, Bolívia e Haiti.
Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, os desaparecimentos forçados na América Latina durante o século XX tiveram várias semelhanças: eram realizados por grupos militares ou paramilitares, sua prática era centralizada e clandestina e eram acompanhados por uma campanha psicológica de manipulação que buscava a aceitação dos métodos para que os crimes permanecessem impunes.
Ao contrário do século XX, os desaparecimentos forçados na região hoje ocorrem frequentemente em situações de conflito interno, como forma de repressão política contra opositores. Defensores dos direitos humanos, por exemplo, são frequentemente vítimas dessa prática.
Hoje, os fatores que causam os desaparecimentos são basicamente três: migração forçada, crime organizado e conflitos políticos internos de cada país.
Em muitos países, organizações criminosas operam em conluio e com a anuência do Estado, porque as estruturas estatais foram penetradas e afetadas pelas ações do crime organizado. A fronteira entre crime organizado e Estado não existe mais; portanto, se analisarmos a situação sob a perspectiva de encontrar os responsáveis pelos desaparecimentos, a situação se torna ainda mais complexa do que já é, tornando tanto a busca quanto a acusação dos autores extremamente difícil.

América Central
Os centro-americanos enfrentam dois problemas quando se trata de desaparecimento forçado: o desaparecimento de migrantes por agentes de imigração, policiais ou militares dentro do México, e os desaparecimentos dentro de seus próprios países.
Na Guatemala, há 45.000 casos registrados de desaparecimentos forçados e 15.000 assassinatos por motivação política. Durante o governo do Coronel Enrique Peralta Azurdia, a polícia judiciária foi organizada como uma força policial política e as prisões por suspeita foram “legalizadas”. Após essas prisões, as vítimas foram mantidas incomunicáveis e submetidas a interrogatórios e tortura.
Em El Salvador, os desaparecimentos forçados eram uma forma de apagar crimes, de acordo com uma investigação conduzida pela Comissão Nacional de Busca de Adultos Desaparecidos no Contexto do Conflito Armado em El Salvador (CONABÚSQUEDA), com o auxílio do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).
Os crimes, segundo a investigação, foram perpetrados principalmente pelas forças de segurança militares da época. Segundo dados oficiais, pelo menos 8.000 desaparecimentos ocorreram durante a guerra civil.
Hoje, o problema na América Central não desapareceu. Em 25 de agosto de 2021, a Anistia Internacional acusou o Estado nicaraguense de adicionar o desaparecimento forçado às “táticas que as autoridades implementaram para silenciar qualquer crítica ou voz de oposição”. O relatório analisa os casos de 10 pessoas que foram detidas e cujo paradeiro foi posteriormente negado. Até hoje, elas permanecem desaparecidas.

México
Entre os pedidos de ação urgente apresentados ao Comitê das Nações Unidas sobre Desaparecimentos Forçados (CED), 49% vêm do Iraque e 42% do México.
Ao contrário da maioria dos países latino-americanos, o México não vivenciou uma ditadura militar no século XX, embora tenha sofrido desaparecimentos e crimes durante a chamada “Guerra Suja”, que permanecem impunes.
Os desaparecimentos no país, mais de 85.000 segundo dados oficiais de abril de 2021, são frequentemente atribuídos ao crime organizado, tornando muito difícil determinar quando ocorre um desaparecimento.
Os “43 de Ayotzinapa”, como ficou conhecido um dos casos que mais atraiu atenção internacional, ocorreu em setembro de 2014. Em 2015, meses após o desaparecimento dos 43 estudantes na cidade de Iguala, sul do México, foi criada a Promotoria Especializada em Busca de Pessoas Desaparecidas, que foi substituída em 2018 pela Promotoria Especializada em Investigação de Crimes de Desaparecimento Forçado. Apesar desse progresso, o Comitê das Nações Unidas sobre Desaparecimentos Forçados aponta graves deficiências nas investigações, incluindo: investigações fragmentadas, a ausência generalizada de uma estratégia abrangente, a busca por hipóteses investigativas infundadas baseadas em preconceitos, a rejeição de casos de desaparecimento forçado temporário e a falta de garantias que excluam tortura e maus-tratos a suspeitos na obtenção de provas.
Em novembro de 2020, o Ministério Público reclassificou o crime de sequestro para desaparecimento forçado, abrindo caminho para o julgamento dos policiais e militares envolvidos. Até o momento, oito testemunhas ou pessoas-chave no caso foram assassinadas.
Em outubro de 2023, o Comitê contra o Desaparecimento Forçado apresentou um relatório sobre o México. O Comitê registrou 111.540 pessoas desaparecidas no país entre 1º de janeiro de 1962 e 12 de setembro de 2023. O documento destaca também a relutância de algumas autoridades no país em registrar e compartilhar informações no Registro Nacional de Pessoas Desaparecidas e Não Localizadas, o que leva a crer na possibilidade de subnotificação em um número já alarmante.

América do Sul
A Colômbia tem o maior número de desaparecimentos forçados devido ao conflito com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Dados oficiais indicam 47.259 vítimas de desaparecimento direto e mais de 120.000 desaparecimentos indiretos. De acordo com o relatório “Até que os encontremos: Vítimas de Desaparecimento Forçado na Colômbia”, seis em cada dez pessoas desapareceram durante o conflito armado entre 1996 e 2005, e duas entre 2006 e 2015.
51,4% dos casos de desaparecimento forçado na Colômbia tiveram um autor anônimo. Dos 49,6% restantes, a maioria eram grupos paramilitares (46,1%).
Em setembro de 2023, de acordo com o Cadastro Único de Vítimas (RUV), 192.440 pessoas foram registradas como desaparecimento forçado no país.
Na Argentina, milhares de pessoas desapareceram durante o chamado “Processo de Reorganização Nacional”, entre 1976 e 1983. Há controvérsias em relação aos números, já que a Comissão Nacional de Pessoas Desaparecidas estima que houve 9.000 desaparecidos, enquanto algumas organizações civis e atores políticos estimam o número em até 30.000.
Esses desaparecimentos levaram ao surgimento, em 1977, do grupo conhecido como “Mães da Praça de Maio”, que buscava localizar seus filhos e, posteriormente, levar os responsáveis por seus desaparecimentos a julgamento.
Houve outros casos de desaparecimento forçado na democracia. Um deles é o de Facundo Astudillo Castro, um jovem que foi preso por violar a quarentena, desapareceu e foi encontrado morto por um grupo de pescadores. Os depoimentos dos policiais envolvidos são contraditórios.
No Peru, a Direção-Geral de Busca de Pessoas Desaparecidas do Ministério da Justiça e Direitos Humanos publicou uma lista de pessoas desaparecidas entre 1980 e 2000. Das 20.329 pessoas na lista, apenas 865 haviam sido encontradas e devolvidas às suas famílias para sepultamento. De acordo com um estudo de 2021 da Comissão Internacional de Juristas, apenas 47 dos mais de 20.000 casos resultaram em decisão judicial.
Desaparecimentos de 2023 a 2024
Segundo dados da ONU, entre maio de 2023 e maio de 2024, a Argentina se destaca com o maior número de desaparecimentos forçados, são 3.061 desaparecidos nesse período, seguido pela Guatemala, com 2.897.
- Peru – 2.361
- Colômbia – 944
- Chile – 787
- México – 355
- Honduras – 130
- Nicarágua – 106
- Venezuela – 39
- Bolívia – 26
- Uruguai – 19
- Brasil – 16
- Equador – 5
- Panamá – 1
- Cuba – 0
Os números acima são casos pendentes, de acordo com o relatório do Grupo de Trabalho da ONU sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, em maio de 2024.
A origem do Dia Internacional
Em 21 de dezembro de 2010, à Assembleia Geral da ONU, por meio da resolução A/RES/65/209, expressou preocupação com o aumento dos desaparecimentos forçados ou involuntários em várias regiões do mundo, incluindo prisões, detenções e sequestros quando fazem parte ou equivalem a essa prática. Além do aumento de relatos de assédio, maus-tratos e intimidação sofridos por testemunhas de desaparecimentos ou familiares de pessoas desaparecidas.
A resolução de 2010 declarou 30 de agosto o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, que começou a ser reivindicado em 2011.
Sem acesso à informação, o acesso à verdade e à justiça é impossível. Apesar do progresso, ainda existem desafios profundos para o direito à informação das famílias e entes queridos de pessoas desaparecidas. O “desaparecimento forçado” está classificado como crime contra a humanidade e não está sujeito a prescrição. As famílias das vítimas têm o direito de obter reparação e de exigir a verdade sobre o desaparecimento.
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Fontes:
– Desaparición forzada en América Latina
– La herida de las desapariciones forzadas en América Latina
– Desaparición Forzada
– LA DESAPARICIÓN FORZADA DE PERSONAS EN AMÉRICA LATINA
– DESAPARICIONES FORZADAS